Público Brasil Histórias e notícias para a comunidade brasileira que vive ou quer viver em Portugal.
Em pouquíssimo tempo, seremos todos hotéis e hóspedes
Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
Acesso gratuito: descarregue a aplicação PÚBLICO Brasil em Android ou iOS.
No sistema de metades da organização social dos Caingangues, povos indígenas originários do Sul do Brasil, encontra-se uma versão resumida da cosmologia dualista. No mito, os heróis culturais Kamé e Kairu produzem não apenas as divisões entre os homens, mas entre os seres da natureza.
Desta forma, segundo a tradição, o Sol é Kamé e a Lua, Kairu. O pinheiro é Kamé e o cedro, Kairu. O lagarto é Kamé e o macaco, Kairu. E assim por diante, conforme estudo da organização sócio ambiental dos povos indígenas do Brasil.
Há 15 anos, conheci, no Bairro Alto, em Lisboa, Dona Irma, bailarina cubana que, aos 28 anos, resolveu ficar na cidade, após uma apresentação do corpo de bailado de Havana. Dona Irma vivia em cima de uma garrafeira, na Rua Diário de Notícias. Figura carismática, macumbeira, eloquente e contadora de histórias. Tornamo-nos amigos.
Anos mais tarde, aos 82 anos, Dona Irma foi despejada pelo senhorio do apartamento de um quarto (T1), onde ela morava havia 50 anos, para dar lugar a um alojamento local. Dona Irma foi trocada por uma mala de rodinhas, que produz o som do novo cancioneiro contemporâneo, nos compassos das pedras portuguesas da capital. Dona Irma morreu três meses depois da mudança.
Em Lisboa, até os carros passaram a ser hotéis, e os motoristas, hóspedes em suas autocaravanas. Há relatos de que pessoas também vivem em carros de aplicativos.
Os novos retirantes lisboetas e de demais cidades portuguesas, ao perderem o direito à moradia, vivem hoje no entorno, nas periferias, em um novo conceito de hotel, onde uma habitação de três quartos (T3), que outrora era destinada a uma família, casal e dois filhos, agora, dá lugar à informalidade de um novo negócio, onde quartos são alugados e o novo modelo de “hotel” oferece ainda uma cozinha e um banheiro comum aos “hóspedes” da casa.
As comunidades migrantes brasileira, cabo-verdiana e angolana, em bem pouco tempo, irão viver em barracas nos quintais de suas embaixadas, que também terão seus prédios adaptados para acolher seu povo. Os embaixadores passarão a ser os síndicos dos novos tempos.
Seremos todos Kaimé e Kairu, numa versão empobrecida, na qual não há memória das cidades e as tradições comuns dão lugar ao hotel (Kaimé) e ao hóspede (Kairu)? Estamos replicando pelo mundo a cultura dualista, binária, estadunidense, em que só há duas hipóteses: ser winner (vencedor) ou loser (perdedor) — característica do fanatismo e das ideologias?
Em 2011, quando cheguei a Lisboa, as casas eram vendidas por dois tostões. Conheci um lisboeta na altura que havia comprado 20 apartamentos, casas na freguesia de Santo António, aos pés da Rua de São José, para transformar tudo em alojamento local. Ainda hoje, ele continua feliz com seu garimpo, mesmo que tenha perdido seus vizinhos, a tasca do Adélio, a mercearia da Betinha, a peixaria do senhor Arlindo, o talho do João e sua dignidade.
Conventos, castelos e, daqui a bem pouco tempo, até as casas de fados vão virar hotéis, onde os hóspedes tocarão a guitarra portuguesa numa aplicação do celular, cantando alexandrinos em formato Karaokê.
“Lisboa, onde andarás? Hoje, bati à tua porta”.