Hidroxicloroquina: excluído o artigo que popularizou falso tratamento para a covid-19

O artigo de Março de 2020 que mostrava a eficácia da hidroxicloroquina depressa foi desacreditado por outros cientistas e revelou ter várias falhas. Mas só agora foi retirado de publicação.

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A hidroxicloroquina, um fármaco contra a malária, tornou-se famosa pela sua alegada eficácia contra a covid-19 - rapidamente desmentida George Frey/Reuters
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O entusiasmo inicial com a publicação de um “estudo” que provava a eficácia da hidroxicloroquina contra a covid-19, em Março de 2020, foi rapidamente eclipsado pelas acusações de problemas com os métodos utilizados e preocupações éticas. Vários estudos posteriores confirmaram que os resultados eram falsos: a hidroxicloroquina não é útil para tratar a covid-19. Esta terça-feira, quatro anos e meio depois da publicação deste trabalho, o artigo foi finalmente excluído pela revista International Journal of Antimicrobial Agents.

Recuando ao início da pandemia, nos primeiros meses de 2020, as dúvidas sobre os fármacos a utilizar no combate a um vírus recente e em constante evolução somavam-se. A hidroxicloroquina, um fármaco utilizado contra a malária e algumas doenças auto-imunes, era uma das estratégias terapêuticas em estudo por parte da Organização Mundial da Saúde. Logo de seguida começaram os estudos mais alargados e que mostraram que não havia vantagem em tomar estes medicamentos – um dos primeiros é do início de Maio de 2020.

Mas antes disso, já tinha sido publicado online, a 20 de Março de 2020, uma investigação da equipa do Instituto Hospitalar Universitário de Marselha (França) em que se alegava que a hidroxicloroquina conseguia reduzir os níveis de vírus em amostras de covid-19. Mais: os seus efeitos seriam ainda maiores se fossem utilizados com o antibiótico azitromicina. O principal autor do texto, Didier Raoult, tornou-se uma figura na promoção deste fármaco através das redes sociais e da televisão. O entusiasmo em torno da hidroxicloroquina alastrou-se à classe política, sendo promovida por Donald Trump ou Jair Bolsonaro.

Os problemas com o estudo começaram a surgir poucos dias depois. Como recorda a especialista em integridade científica Elisabeth Bik, uma publicação no seu blogue, datada de 24 de Março de 2020, já alertava para os seis pacientes tratados com hidroxicloroquina e excluídos do estudo. Desses seis, um morreu e três foram transferidos para os cuidados intensivos. Há outras falhas neste trabalho, como a classificação dos grupos de controlo (pessoas que não tomam o fármaco para comparar os verdadeiros efeitos do mesmo). Na componente ética, há outras falhas: inicialmente um dos autores era o director da revista científica em que o estudo foi publicado; e não foi possível de confirmar se os pacientes deram o seu consentimento para serem tratados com azitromicina.

A exclusão deste estudo da revista, quase cinco anos depois da sua publicação, termina um longo processo de escrutínio aos trabalhos de Didier Raoult e da sua equipa. O cientista francês era director do Instituto Hospitalar Universitário de Marselha (reformou-se em 2022) e tem sido investigado desde então. De acordo com a base de dados do Retraction Watch, Didier Raoult tem 12 trabalhos excluídos por violações éticas ou falhas metodológicas.

O trabalho publicado em Março de 2020 foi citado mais de 3000 vezes por outras investigações científicas. Apesar das críticas de vários cientistas e associações, a revista International Journal of Antimicrobial Agents decidiu manter o artigo como válido até agora. Um estudo liderado por Heiman Wertheim, do Centro Médico Universitário Radboud (Países Baixos), e publicado na mesma revista quatro meses depois já tinha concluído que existiam “vários problemas metodológicos graves” e que as conclusões não “garantem uma associação de eficácia”. O artigo “ganhou imensa atenção e contribuiu para a procura de um medicamento sem provas adequadas do seu benefício”, concluiu o estudo.

Um outro estudo na revista The Lancet, publicado em Maio de 2020 e excluído no mês seguinte a pedido dos próprios autores, também tinha feito afirmações sobre a eficácia da hidroxicloroquina. A fiabilidade dos dados e as incongruências nas contas feitas ajudaram a soar os alertas quanto à potencial fraude desse trabalho.

Os artigos científicos são, na maioria das revistas, submetidos para uma revisão anónima por outros investigadores da mesma área, permitindo uma maior confiança de que os resultados são avaliados com solidez. No entanto, a rápida pressão para publicação, ainda mais agudizada nos primeiros meses da pandemia da covid-19, contribuíram para a publicação de muitos trabalhos que viriam a ser excluídos por falta de robustez.

O caso e a exploração de Didier Raoult enquanto vítima de “outra forma de censura científica”, como disse ao blogue Retraction Watch em Agosto deste ano, têm motivado comparações com Andrew Wakefield, o médico britânico cujo estudo fraudulento da associação entre a vacina contra o sarampo e o autismo continua a alimentar o movimento anticiência e a antivacinação. E não, não há quaisquer provas de que a vacina tríplice (contra sarampo, rubéola e papeira) provoque autismo, nem que a hidroxicloroquina tratou pessoas com covid-19.

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