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Viúva de marido vivo
Não foi apenas a morte de Francisco que se deu de forma gradual; meu luto também se desenrolou lentamente.
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Assisti Francisco sucumbir. Durante quatro anos, vivi sua morte de forma lenta, cruel e indigna. Sua mente brilhante, suas memórias e suas histórias se foram. Fui, de fato, uma viúva de um marido ainda vivo.
Francisco e eu compartilhamos 14 anos de casamento. Os primeiros 11 foram marcados pela saúde, trabalho, gastronomia e vinho. Sempre fomos parceiros, e nossa história começou de forma especial. Em 2008, ao ligar para seu número pessoal, disse: "Gostaria de trabalhar com o senhor". Ele me orientou a contatar sua secretária, Ana Maria Tebar, para agendar uma entrevista. Para minha surpresa, quem atendeu foi ele, o próprio Chico Santa Rita.
A entrevista durou quase três horas e, na realidade, foi uma conversa sobre política, Brasil, mundo, gastronomia e vinhos. Ao deixar seu escritório, na Avenida Lavandisca, em Moema, São Paulo, fui à casa de minha mãe no Itaim. Quando ela me perguntou como tinha sido a entrevista, respondi: "Foi boa. Não sei se serei selecionada, mas posso dizer que encontrei o homem da minha vida". Minha mãe, surpresa, comentou: "Fernanda, você realmente é do signo de peixes". E, logo em seguida, perguntou: "Qual a idade dele?" Respondi: "Não sei, mas ele é mais velho do que eu, e isso não me importa".
Fui selecionada e comecei a trabalhar para ele, fazendo de tudo, incluindo suportar suas exigências e o perfeccionismo característico. (Quem trabalhou com Chico Santa Rita entenderá.) Nessa época, ele estava em um relacionamento, e eu também. Nossos namoros terminaram quase ao mesmo tempo e, um dia fomos à sede da UOL, onde Chico seria entrevistado sobre a campanha presidencial de 1989, vencida por Fernando Collor de Mello, um tema complicado para ele, que queria ser lembrado por suas 200 campanhas em todo o Brasil.
Após a entrevista, Chico estava exausto. Decidimos que precisávamos de um bom jantar, um bom vinho e uma boa conversa. Fomos ao Charlô Bistrô, nos Jardins. Um detalhe importante: Chico estava sem carro, e eu dirigia, uma das raras vezes em que assumi essa função durante nosso relacionamento.
Aquela noite mudou tudo. Tornamo-nos amigos, apaixonados, parceiros de trabalho e amantes, até formalizarmos nossa união. Vivemos intensamente, seguindo o que a vida e o tempo exigiam. Francisco tinha uma sede insaciável de viver. Nossa parceria era única, algo que eu nunca imaginei vivenciar.
Campanhas pelo Brasil
Os 11 anos de casamento foram repletos de intensidade. Trabalhamos em várias regiões do Brasil: Pará, Paraná, interior de São Paulo, Brasília, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Bahia, Pernambuco, Goiás, Acre, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina, sempre em movimento, com Chico irradiando vitalidade e desejo de viver.
Em 2016, ele decidiu realizar seu sonho de viver na Europa. Escolhi Portugal, mais especificamente o Porto, pois sonhava em me tornar enóloga e produtora de vinhos no Douro. E assim fizemos.
Um acidente inesperado mudou nossas vidas. Uma queda resultou em um diagnóstico que jamais imaginamos: dois aneurismas na região da carótida, com risco de ruptura a qualquer momento. Optamos pela cirurgia.
Os médicos afirmaram que a operação foi bem-sucedida e que precisávamos voltar a viver. Mudamo-nos para Portugal, especificamente para o Douro, e iniciamos nosso projeto de produção de vinhos.
Durante 2018, Chico começou a apresentar lapsos de memória. Consultamos especialistas e, após uma ressonância magnética, o diagnóstico foi demência, o que significava que, além dos aneurismas, sua capacidade cognitiva estava comprometida. Os primeiros sinais incluíram o esquecimento de pequenos detalhes, incluindo meu nome, Fernanda, sua esposa havia 11 anos.
Chico sempre quis manter a privacidade sobre sua doença, dizendo: "Fernandinha, não quero ser visto como caquético". Por um tempo, a doença se estabilizou até regrediu. Mas a situação voltou se agravar de forma devastadora, e tanto o médico quanto eu concordamos que era hora de iniciar o tratamento paliativo, não curativo. A partir de abril ou maio de 2019, suas habilidades cognitivas e sua interação com o mundo começaram a piorar drasticamente.
Percebi que ele não conseguia ficar sozinho nem por um minuto. A doença o tornara uma ameaça para si mesmo, para nossos cães, para as pessoas ao seu redor e para mim. Um dos episódios mais tristes foi vê-lo em frente ao fogão, lutando para lembrar ou criar uma receita. Francisco sempre foi um cozinheiro talentoso, mas, desde fevereiro/março de 2019, ele parou de cozinhar. Confidenciou: "Não entendo mais as receitas. Não lembro me delas". Naquele instante, me aproximei e disse: "Hoje, quem cozinha sou eu". Foi a primeira vez, em 11 anos, que preparei um jantar para ele; até então, ele sempre fora responsável por nossas refeições.
Espaços vazios
O que era mais precioso para ele, seu instrumento de trabalho e fonte de realizações, foi sendo corroído por essa terrível doença: a demência, o Alzheimer e os aneurismas. Gradativamente, ele foi perdendo habilidades de leitura, senso crítico — características que o tornavam um especialista em análises de cenários políticos — e de escrita, deixando espaços vazios na memória.
Eu odeio a demência. Tenho esse direito, pois essa doença tirou a vida do Francisco. A demência é ingrata, cruel e desumana, especialmente, para homens como Chico e Maurício Kubrusly. Embora a doença seja devastadora para todos, conhecer o trabalho desses dois jornalistas torna a situação ainda mais dolorosa.
O documentário Kubrusly: Mistérios Sempre Há de Pintar Por Aí (disponível na plataforma Globoplay) é um relato sobre viver com demência. Isso me trouxe conforto e a motivação para escrever este texto. Proporcionou-me coragem para expor tudo isso.
Vivi exatamente aqueles episódios e situações: as explicações pacientes e constantes, os artifícios para resgatar memórias e a persistência em criar um ambiente digno. Não há romance em cuidar de uma pessoa com demência; há tristeza. Assim, o sentido de urgência é criar dignidade para o paciente.
Não foi apenas a morte de Francisco que se deu de forma gradual; meu luto também se desenrolou lentamente. A deterioração foi avassaladora. O Chico que conhecia havia partido. Seu corpo e mente se esvaziavam a cada dia. Ao meu lado, vivi a perda gradual da memória, a desorientação, a confusão mental e as crises psíquicas. A doença dominou Chico de maneira intensa e permanente.
Francisco começou a dialogar com a televisão, acreditando que o que via na tela estava em casa. Um dia, pediu que arrumássemos a mesa para 10 pessoas, dizendo: "Quando o jogo acabar, todos almoçaremos juntos".
A única conexão dele com o mundo era eu, não por imposição, mas por sua escolha. Às vezes, eu era apenas uma figura estranha para ele.
Anos dolorosos
Esses anos foram dolorosos, especialmente em um país diferente, enquanto tentava estabelecer um novo negócio. Deixei de lado o projeto de produção de vinhos e o curso de enologia, dedicando-me inteiramente a ele. O desgaste emocional e físico era evidente, tanto para ele quanto para mim. O cuidador informal acaba se deteriorando ao lado do doente.
Minhas lágrimas e desespero eram solitários, mesmo com o apoio de poucos amigos que me mantinham de pé. Houve dias em que o desespero me levou a pensar em dar um fim a nossas vidas. Durante a pandemia, eu estava sozinha com ele em uma quinta isolada, completamente desesperada. Os sentimentos eram confusos e o medo latejava no peito.
Chegou um momento em que não consegui mais evitar que ele fosse para uma clínica de cuidados. O Aconchego Residência Sénior, com Bruno, Margarida e toda a equipe, tornou-se nossa grande família nos últimos meses de vida do Chico. Quase diariamente, eu estava ao seu lado, fazendo videochamadas duas vezes ao dia, para que ele ouvisse minha voz.
Em 15 de setembro de 2022, após o café da manhã, sem nenhum estresse, os aneurismas romperam-se. Chico sofreu uma hemorragia cerebral. Não foi um derrame fatal, mas um sangramento lento e gradual. Descobrimos que, além de dois, havia um terceiro aneurisma. Os sangramentos duraram oito meses. Ele parou de falar, andar e se movimentar. Não fazia mais nada sozinho. Seu corpo também sucumbia, além da falência mental, a física.
Os poucos momentos de lucidez foram diminuindo até desaparecerem. Contudo, havia uma forma de nos conectarmos: minha voz. Eu cantava para ele a música de Marisa Monte, Amor I Love You, e, em certos momentos, ele se juntava a mim, criando uma conexão fugaz que logo se perdia.
A explicação para essa conexão é o que chamamos de memória afetiva. Não sei se é um termo técnico da medicina, mas uma amiga que vivenciou a demência da mãe me explicou isso, e foi o suficiente para que eu usasse todos os recursos de carinho e amor, na esperança de que ele me reconhecesse em meio ao seu vazio.
Os aneurismas sangravam de forma gradual. Apegávamo-nos à esperança de que era apenas uma fase passageira. Eu desejava e acreditava em uma recuperação súbita. Acreditava que o sangramento ia parar e estabilizar. Esse foi um sentimento que carreguei no peito por meses: ele voltará a ficar bom. Quantas vezes olhei para ele, esperando reencontrar o Francisco, meu Francisco José. Mas, após alguns instantes, a realidade se impunha: apenas o corpo dele definhando permanecia. O meu Francisco José, o homem, o jornalista, o publicitário, o empresário, o racional e cheio de vida, já não estava mais ali.
A morte
Na primeira semana de maio de 2023, estive com ele todos os dias, até tarde. Comprei-lhe um perfume novo, um polar bege como ele gostava. Dançamos ao som de Marisa Monte. Levei os cães, Paco José e Lua Maria, para estarem com ele em uma tarde ensolarada. Na sessão de fisioterapia, Chico realizou alguns passos com a ajuda do andador, do amigo Luís e da fisioterapeuta. O milagre da melhora. No dia 5 de maio, coloquei-o para dormir. Ao me despedir, beijei-o como sempre, e ele sorriu. Então, me disse: "Fernandinha, agora posso ir". Respondi: "Eu sei. Durma, meu querido". E ele repetiu: "Já posso ir."
Na madrugada de 8 de maio, três dias depois, Chico faleceu.
Dedico este texto a todos os cuidadores informais que aceitam o compromisso de zelar pela dignidade de um ente querido, nas pessoas de Sônia, minha mãe, que foi cuidadora do meu pai, e de Susana, que zelou pela mãe. Dois exemplos incontestáveis de cuidadoras do amor.
Dedico também a todos que me ajudaram a cuidar do Francisco. Muito obrigado.
E, por fim, um agradecimento a Beatriz Goulart, esposa do Maurício Kubrusly. Beatriz, se precisar conversar, estou aqui para te ouvir e apoiar