Na Síria, a guerra entre a Turquia e os curdos ainda não acabou
Curdos da Síria temem ser abandonados pelos Estados Unidos assim que Donald Trump regressar à Casa Branca. Turquia não desiste de os afastar da sua fronteira.
O retrato da Síria na primeira sexta-feira desde a queda de Bashar al-Assad foi de festa pura, com multidões nas principais praças e ruas de cidades por todo o país, evocando os protestos semanais do início da revolta, em 2011. Mas as celebrações não chegaram a todo o lado, mantendo-se as tensões e os confrontos entre as Forças Democráticas Sírias, curdas (SDF), e o Exército Nacional Sírio (SNA), treinado e financiado pela Turquia, parte do Exército Sírio Livre (FSA) e da coligação mais alargada que participou na ofensiva que levou à fuga de Assad.
Na quarta-feira, foi anunciado um cessar-fogo mediado pelos Estados Unidos em Manjib, no Nordeste da província de Alepo, a partir de onde os grupos pró-turcos tentavam avançar até Kobani, a cidade junto à fronteira com a Turquia que se tornou símbolo da resistência dos curdos frente ao Daesh, em 2015. Apesar desse acordo, que definiu a retirada dos curdos (aliados dos EUA), há relatos de conflitos na zona de Kobani, e nas cidades de Raqqa e Ain Issa, mais a leste, onde o SNA conta com o apoio da aviação e de drones turcos.
Do ponto de vista do Presidente Recep Tayyip Erdogan, estas movimentações correspondem a um plano colocado em marcha há anos (e que o Presidente turco admitiu ter tentado pôr em prática através de negociações com Assad) com o objectivo de afastar o mais possível os curdos sírios da fronteira da Turquia, alargando “para leste a ‘zona tampão’” conquistada por Ancara entre 2016 e 2019, “ao longo de uma boa parte da fronteira comum” e que “se estende por um total de 900 quilómetros”, resumiu o jornal Le Monde.
Ao mesmo tempo, uns e outros querem evitar que o Daesh (autoproclamado Estado Islâmico) e outros grupos islamistas radicais se possam aproveitar desta instabilidade.
Na região para uma visita na sequência do colapso do regime sírio, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, reuniu-se nesta sexta-feira em Ancara com o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Hakan Fidan, para discutir precisamente “formas de garantir que a ameaça” do Daesh “vão volte a surgir”: “Os nossos países trabalharam arduamente e deram muito ao longo de muitos anos para garantir a eliminação do califado”, afirmou Blinken, ao lado de Fidan. “É imperativo que continuemos com esses esforços”, disse ainda.
Claro que as conversações se centraram nos confrontos entre as forças apoiadas pelos dois países, mas nem Blinken nem Fidan se referiram publicamente aos combates ou ao acordo de há dias. “A prioridade da Turquia na Síria é garantir a estabilidade o mais rapidamente possível, para evitar que o terrorismo ganhe terreno e que o Estado Islâmico e o PKK dominem a região”, afirmou Fidan. Ancara considera as SDF como uma extensão do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, turco), que Turquia, EUA e Bruxelas consideram um “grupo terrorista”.
Face à ameaça do Daesh, os EUA escolheram aliar-se às YPG (Unidades de Defesa do Povo), o braço armado do Partido da União Democrática (PYG), grupo curdo sírio mais organizado e que, face à revolta contra Assad e à guerra que se seguiu, assumira o controlo das três regiões que formam Rojava (Curdistão Sírio ou Ocidental), na fronteira sul dos turcos. Na prática, Washington treinou e armou as YPG, que se uniram a outros movimentos e formaram as SDF.
Vistos como dispensáveis
Depois de terem assegurado o grosso dos combates no terreno contra os radicais (com apoio da aviação dos EUA), os curdos sírios viram-se abandonados por Washington durante a presidência de Donald Trump, que prometeu a Erdogan parar de armar e financiar os aliados e chegou a anunciar a retirada dos soldados norte-americanos no terreno (900 continuam na Síria).
“Os curdos na Síria estão numa situação muito precária”, disse Renad Mansour, especialista em Médio Oriente da Chatham House, ao jornal Financial Times. Em conflito com a Turquia, “dependem da sua relação com os Estados Unidos, mas os Estados Unidos vêem-nos como um trunfo quando é conveniente”, disse Mansour. “A preocupação deles é que possam ser vistos como dispensáveis.”
Actualmente, as SDF contarão com quase 100 mil combatentes e mantém o controlo numa parte considerável de território, mas com o regresso de Trump à Casa Branca, já em Janeiro, temem voltar a ser traídos.
“Dentro de 40 dias, teremos um novo presidente dos EUA que está ansioso por sair da Síria e que, no passado, esteve disposto a dar muita margem de manobra a Erdogan”, afirmou também ao Financial Times, Jon Alterman, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington. “Será que, desta vez, alguma coisa vai ser diferente?”