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UE-Mercosul: Habemus Pactum?
Sem dúvida, a maior conquistado acordo entre os blocos foi a cooperação política, com a democracia a ser reforçada, num mundo cada vez mais imprevisível, unindo países que respeitam os mesmos valores.
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Finalmente temos fumaça branca, mesmo com alguma fuligem, lançado na manhã do dia 6 de dezembro de 2024, da chaminé da Cimeira do Mercosul, em Montevidéu, Uruguai, capital emblemática do livre comércio, desde a ronda do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), que criou a Organização Mundial do Comércio (OMC), e ocupa, neste semestre, a presidência rotativa do bloco.
Esta Cimeira, para além dos membros plenos do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai) e da Bolívia, recém-chegada, contou, no último momento, com a presença da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, gerando a expectativa de que haveria luz verde, ainda que o presidente argentino, Javier Milei, estivesse com “cara de poucos amigos”, fazendo questão de dizer que o bloco aprisiona os seus sócios, na ânsia de poder libertar os Estados mercossurenhos para a firma de acordos diretos com Estados terceiros, com um piscar de olhos para os Estados Unidos e para a China.
Porém, a máxima da construção de blocos econômicos é o comércio livre interpartes, sem a cobrança de taxas alfandegárias, o que implica, em contrapartida, a proibição de acordos bilaterais ao livre querer dos Estados, pela própria lógica da teoria da integração regional.
Muita água ainda vai correr depois do anúncio do fim das negociações, que duraram um quarto de século. O desagrado de alguns, vocalizado, sobretudo, pelos agricultores franceses, levará a França a grandes esforços para conseguir alcançar uma minoria de bloqueio no Conselho da União Europeia, que exige a participação de pelo menos quatro Estados-membros e poderá contar com o apoio da Polônia, da Itália, da Áustria e da Irlanda.
A aprovação do Conselho, órgão que defende os interesses nacionais, composto pelos representantes a nível ministerial dos 27 Estados, só é alcançada se conseguir o voto favorável de 55% dos membros, ou seja 15 Estados, os quais devem perfazer 65% da população europeia. É a chamada dupla maioria ou maioria qualificada.
Ora bem, os cinco Estados acima nomeados perfazem 40% da população e, por consequência, se a França conseguisse este apoio, o Acordo seria rejeitado pelo Conselho, de nada valendo a assinatura recentemente anunciada. Portanto, não se afigura tarefa fácil a sua aprovação, e cabe à presidente Von der Leyen convencer os seus pares da relevância geopolítica e comercial da nova aliança.
A economia francesa, segundo informações disponíveis no site web da AICEP, “é altamente desenvolvida e se assenta bastante no setor dos serviços, que representava 80,9% do Produto Interno Bruto em 2023, seguindo-se a indústria (17,5%) e a agricultura (1,6%). Ao nível industrial são de referir, por exemplo, maquinaria, produtos químicos, automóveis, metalurgia, aeronáutica, eletrônica e processamento de alimentos”.
Diante desses dados, não podemos deixar de questionar: se a agricultura francesa contribui com menos de 2% do PIB contra 17,5% da indústria, como justificar a defesa da “soberania agrícola” francesa, que já de si é um conceito contrário à política comum mais antiga da União Europeia? Será que o setor industrial francês também vê este acordo com maus olhos?
Não basta ouvir as imprecações proferidas no final de novembro, pelo CEO global do Carrefour, Alexandre Bompard, ao anunciar que a sua empresa se comprometia a não comprar e revender carnes do Mescosul, alegando questões ambientais e sanitárias. A “crise da carne”, como ficou conhecida, causou um estrondo tão grande no mercado brasileiro, que Bompard enviou, dias depois, ao Ministério da Agricultura e Pecuária do Brasil, uma carta com um pedido de desculpas, esclarecendo que a declaração teve a intenção de apoiar os agricultores franceses, reconhecendo, entretanto, a alta qualidade, o respeito às normas, e o sabor da carne brasileira.
Perante este cenário, no mínimo caricato, seria interessante ouvir também a opinião do CEO da Airbus, que anunciou, há poucos dias, o corte de mais de 2 mil empregos, ou a opinião do líder do Grupo Renault, empresa automobilística que há 25 anos fechou uma das suas fábricas na Bélgica para abrir no Paraná, estado brasileiro que faz fronteira com dois sócios do Mercosul, a Argentina e o Paraguai, e que abriga o “Complexo Ayrton Senna”, considerado o coração da transformação tecnológica da Renault do Brasil e de tantas outras dentre as mais de mil empresas francesas que atuam no mercado sul-americano.
Qual seria então a razão para o presidente Emmanuel Macron estar refém dos seus agricultores, podendo, com esta postura, prejudicar outros setores nacionais relevantes? Aos seus agricultores não lhes chegam os chorudos subsídios que recebem dos cofres europeus, por serem os maiores beneficiários da Política Agrícola Comum?
Os ânimos dos revoltosos conseguiram arrastar uma horda de agricultores europeus em vários Estados-membros, como assistimos no início de 2024, com o bloqueio das estradas por tratoristas que reivindicavam, com algum sucesso, o fim ou adiamento de algumas regras europeias e se posicionavam contra este Acordo de Livre Comércio.
Portanto, o agronegócio parece ser o calcanhar de Aquiles da frente de resistência europeia. Mas seria importante esclarecer que este Acordo prevê cotas para entrada de alguns produtos, como carne bovina, suína, aves, açúcar e etanol, provenientes do bloco regional sul-americano. A título exemplificativo, no caso da carne bovina, a cota para os países do Mercosul é de 99 mil toneladas. Certamente, este volume anual não inundará o mercado interno europeu.
Por outro lado, estritas regras sanitárias e fitossanitárias deverão ser respeitadas e, seguramente, as questões que inquietam os agricultores europeus, como o uso de agrotóxicos que a União Europeia proíbe, ou a entrada de produtos em solo europeu, que terão de comprovar que não provém de áreas desmatadas, serão levadas em conta na importação dos produtos oriundos do Mercosul.
O anúncio do fim das negociações não pode ser celebrado somente pelo feito da abertura de dois grandes mercados, liberalizando o comércio entre 700 milhões de habitantes, das commodities agrícolas que privilegiam os sul-americanos ao lucro das indústrias europeias. Os dois lados conseguiram ganhos nesta nova versão, que ajustou o texto firmado em 2019: o Mercosul conseguiu salvaguardar parte das compras públicas, e a UE alcançou o compromisso dos quatro sócios sul-americanos de respeito às normas ambientais, incluindo as regras contra o desmatamento.
Sem dúvida, a maior conquista foi a cooperação política, com a democracia a ser reforçada, num mundo cada vez mais imprevisível, unindo países que respeitam os mesmos valores, fator essencial para enfrentar a nova ordem mundial que vai ganhando contornos nebulosos, seja pelos conflitos bélicos, seja pelas guerras comerciais, acirradas com a aproximação da posse de Donald Trump na presidência dos EUA, prevendo-se, de antemão, a volta do nacionalismo exacerbado e do estrangulamento do livre comércio. Só por esta razão, o Acordo UE-Mercosul já valerá a pena.
Aliás, é de se elogiar a postura decisiva de Ursula von der Leyen que, ao participar desta Cimeira, colocou-se à altura dos pais da Europa — Robert Schuman e Jean Monnet —, por apostar na vertente geopolítica da integração, marco do processo civilizatório, em detrimento de arranjos nacionais que não se coadunam com os interesses estratégicos dos dois continentes.
Segundo uma das leis de Murphy, toda a solução gera novos problemas. Mas temos de acreditar que tantos esforços da diplomacia, como da academia, por mais de duas décadas, resultarão num final feliz, ainda que não esteja próximo, pois, agora, os 32 Estados envolvidos começam a redigir o primeiro parágrafo do último capítulo desta novela, com a fase da revisão e tradução jurídico-linguística do texto nas 24 línguas oficiais, seguida da sua aprovação no Conselho da UE, no Parlamento Europeu e nos respectivos Parlamentos nacionais, para, aí sim ,bradarem ao mundo: Habemus Pactum!