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Mare Nostrum
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Despeço-me com uma certa angústia, daquelas que parecem saudades antecipadas. Como quando abraço minha mãe, meus avós antes de partir de volta para o(s) lugar(es) que decidi chamar de casa, numa jornada solitária que começou aos 16 anos.
É o nosso terceiro (re)encontro. Na primeira vez, numa viagem a trabalho, molhei só os pés. Na segunda, num verão em família, as suas águas mornas e tranquilas lavaram a minha alma. Nessa ponta que se chama Mar de Alborão, a parte mais ocidental do Mediterrâneo, vemos o sol nascer, e, ao fim de tarde, céu e mar quase se confundem, não fosse o tom alaranjado do horizonte. Lá, aliás, está a África, o continente Mãe da humanidade. Tão perto, mas tão distante.
O Mediterrâneo tem um certo magnetismo, que, talvez, só o fato de ser considerado o berço da civilização poderia explicar. Mas a lista de coisas e fatos que o tornam fascinante é extensa. Um mar que conecta três continentes (Ásia, África e Europa), fazendo fronteira com 21 países, e cujas águas se comunicam com o Atlântico, o Mar Vermelho e o Mar Negro. O Mare Nostrum dos romanos também foi rota marítima para gregos e fenícios.
Mas o berço da humanidade nos últimos tempos tem sido chamado de túmulo da humanidade. Todos os anos, centenas, talvez milhares de vidas se perdem nessas mesmas águas, em travessias em barcos pequenos e precários, num gesto desesperado de quem foge de guerras, pobreza, doenças, desastres.
Nesse fim de tarde de primavera, ouço as andorinhas que, com seu canto e manobras aéreas, parecem celebrar o retorno ou essa possibilidade de ir e vir. Sem fronteiras, sem a necessidade de documentos que comprovem sua existência, sem serem consideradas “ilegais”… ao menos por enquanto, em um momento de avanço global da extrema direita.
Assim que chegamos na cidade espanhola de Fuengirola, mais precisamente no bairro costeiro chamado Los Boliches, despertou a atenção a presença massiva de nórdicos. Uma caminhada pelas ruas e inúmeras placas e fachadas confirmavam a primeira impressão: Scandinavian gym house, nordic medical center, Simply Scandinavian, ruokakauppa. Sim, estávamos no refúgio ensolarado de suecos, finlandeses, noruegueses e dinamarqueses. Talvez a maioria deles já desfrutando da aposentadoria.
Faço uma rápida pesquisa na Internet e descubro que a presença desses povos na região remonta à antiguidade, num hiato entre a saída dos romanos e a chegada dos mouros. Porém, muitos dos casais e grupos com os quais me deparei pareciam mesmo estar numa privilegiada fase — para alguns, claro — do dolce far niente, tomando sol, apreciando boa comida e bebida, na companhia dos amigos.
Um contraste gritante com os poucos africanos que vi no local, todos vendedores ambulantes, que se permitiam sentar na praia e observar o mar para descansar depois de um acumulado de “no, gracias” e “no, thanks”. Não havia academias, supermercados e centros médicos dedicados a eles.
Para os imigrantes negros do Sul Global não há cartões de boas vindas na Europa. E é a cor da pele deles que pinta os barcos abarrotados de gente que cruzam o Mediterrâneo. Ou tentam. Segundo um relatório da Organização Internacional para
as Migrações (OIM), entre 2014 e 2023, quase 30 mil migrantes morreram ou desapareceram nas águas do Mediterrâneo, esse mar que mistura vida, morte, sonhos, desespero, deleite e desgosto.
Mare Nostrum, o nosso mar, mas com perspectivas distintas, dependendo do ponto de partida. Enquanto para alguns trata-se de ócio e entretenimento, para outros, de cova e desalento.