Desporto: veículo de abusos e ódio
1. Das notícias: “Tragédia na Guiné-Conacri: dezenas de mortos após confrontos entre adeptos num jogo de futebol. Imprensa internacional diz que grande parte das vítimas são crianças; corpos 'inundam' ruas, corredores e morgues de hospitais “. De acordo com a imprensa local, o embate deste domingo opôs o N'zérékoré, clube da cidade que recebeu a partida de hoje, ao Labé, e tudo terá descambado a partir do momento em que o árbitro decidiu expulsar dois jogadores da formação visitante, aos 68 minutos. A decisão do juiz da partida terá levado à intervenção de Félix Lamah, Ministro da Agricultura e da Pecuária, que decidiu anular a segunda expulsão” (!!!).
2. Independentemente das circunstâncias próprias desta situação, na verdade bem particulares, o desporto, para muitos quase sinónimo de valores positivos, individuais e sociais, encontra-se minado por crescentes enfermidades, sendo a tomada dessa consciência factor determinante para a sua prevenção e combate. Não vale o discurso unilateral da positividade, acompanhado de algumas singelas palavras e chavões que acabam por diminuir as fortalezas - se é que elas existem ou alguma vez existiram – das mais-valias que o desporto encerra.
O desporto, como a moeda, tem dois lados, como o ser humano que o criou, renova e pratica.
3. No plano nacional, “carregado” de leis e regulamentos, de forte pendor público, pouco se conhece da sua eficácia, aparte um ou outro bom exemplo. Ganha agora espaço de primazia o "canal de denúncia", particularmente após a publicação da Lei n.º 23/2024 de 15 de Fevereiro que, para além de outra matéria, prevê a criação de canais de denúncia de infracções de normas de defesa da ética desportiva, alterando o Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro (regime jurídico das federações desportivas). Assim, a propósito do regime disciplinar das federações, aditou-se uma alínea h): Existência de um canal de denúncia interna destinado a factos susceptíveis de configurarem infracção de normas de defesa da ética desportiva, nos termos e para os efeitos da Lei n.º 93/2021, de 20 de Dezembro. E, no artigo 29.º, surge um novo n.º 4, no mesmo sentido: “A liga profissional cria um canal de denúncia interna destinado a factos susceptíveis de configurarem infracção de normas de defesa da ética desportiva, nos termos e para os efeitos da Lei n.º 93/2021, de 20 de Dezembro, que estabelece o regime geral de protecção de denunciantes de infracções”.
Dê-se conta, para compreensão das remissões efectuadas, que a Lei n.º 93/2021 estabelece o regime geral de protecção de denunciantes de infracções, transpondo a Directiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2019, relativa à protecção das pessoas que denunciam violações do direito da União. Por outro lado, são consideradas normas de defesa da ética desportiva as que visam sancionar a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo (artigo 52º, n.º 2), do regime jurídico que acompanhamos.
4. Nada nos move contra os canais de denúncia, mas conhecendo a omissão de fiscalização pública quanto aos actos e omissões das federações desportivas, receamos que, mais uma vez, estejamos perante uma moda, mais do que em face de uma medida eficaz. E por falar em fiscalização pública, relembre-se que existe um outro canal de denúncia ao abrigo do artigo 31.º da Lei n.º 39/2023 de 4 de Agosto, que veio estabelecer o novo regime jurídico das sociedades desportivas, obrigatório para o Instituto Português do Desporto e Juventude, I. P. e para todas as sociedades desportivas. Visite o leitor a página desse instituto público para denunciar uma infracção. Boa sorte para o encontrar.