Foi “namorada” em África, fez o 25 de Abril, é “saudosa”: G3, um “símbolo nacional”

Um novo livro procura traçar a história, mais afectiva do que tecnológica, entre a mais popular arma portuguesa, os operários que a fabricaram e os soldados por quem passou. Até lhe dedicaram versos.

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Grupo de soldados na Guiné, cada um com a sua G3 Alfredo Graça
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Fabrico de invólucros de munição na Fábrica de Braço de Prata, em Lisboa Arquivo idD
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Um militar dos Comandos na República Centro-Africana, em 2017, com uma G3 modificada Bryan Ferreira
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Se é um daqueles casos em que a lenda superou a realidade ou se aconteceu mesmo nos confins da guerra em Angola, só os que privaram com Chung Su Sing o saberão. É um relato muitas vezes repetido nos meios castrenses: “sob ataque”, o então capitão “saltava logo de um camião Berliet e esvaziava de rajada todo o carregador da G3” antes de chegar ao chão. Nessa altura já estava, aliás, “a recarregar a sua arma”.

Esta foi uma das “histórias lendárias” à volta da espingarda G3 que Pedro Manuel Monteiro ouviu durante os mais de dez anos em que investigou sobre a arma mais conhecida da população portuguesa, a mais longeva e mais acarinhada pelos militares. No prefácio do livro que esta sexta-feira é lançado, o chefe do Estado-Maior do Exército, general Mendes Ferrão, não hesita em designá-la como um “símbolo nacional” que ocupa lugar entre os “ícones de uma época e da identidade de um povo”.

Por G3 – A Grande Arma Nacional (ed. Contra a Corrente) desfilam relatos atrás de relatos de actuais e antigos combatentes que tiveram G3 nas mãos. Foram muitos. “Cerca de um milhão” durante os anos da Guerra Colonial, “talvez outros tantos nas cinco décadas seguintes”.

Alguns testemunhos são concisos. “Acreditávamos nela”, disse José Coelho Coisinhas, sargento-mor que fez comissões em Angola, Guiné e Moçambique, entre 1961 e 1972, num total de 94 meses. Outros são pouco menos do que declarações de amor. “Dormi abraçado à minha G3 muitas noites nas infindáveis matas no Norte de Angola”, contou Armando Dias, que esteve mobilizado entre 1973 e 1975. “Até estava à cabeceira da cama com bala na câmara, pronta a disparar”, relatou Fernando Brás Cavaleiro, que também esteve em Angola.

“Para muitos, a G3 foi uma verdadeira namorada, como muitos lhe chamavam carinhosamente”, escreve Pedro Monteiro, a dado passo. Soldados havia que lhe chamavam “minha companheira” ou até “a minha gaja”. E, tal como a uma amada, houve quem lhe dedicasse versos sentidos. Escreveu o alferes Sá e Castro em 1971:

"Naquelas noites leda,
Envolvia-te nos meus braços,
E aquecia o teu corpo nu."

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Um militar durante a Guerra Colonial, com duas G3 ao lado Livro de memórias PT-LC – Guerra colonial em África (Arquivo da Liga dos Combatentes)

Mais recentemente, em 2000, o tenente-general Joaquim Chito Rodrigues meditava:

"Um dia quando olhei para ti
E vi bala cravada em teu corpo,
Então é que eu percebi
Que sem ti seria homem morto."

442 mil armas

A espingarda automática que nos habituámos a ver nas fotografias dos soldados em África ou nas ruas de Lisboa durante e depois do 25 de Abril entrou ao serviço das Forças Armadas em 1961, mal começaram os combates em Angola. Inicialmente concebida em Espanha, mais tarde fabricada pela alemã Heckler & Koch, as G3 viriam a ser produzidas em Lisboa, na Fábrica de Braço de Prata, a partir de 1963. Antes disso, revela o livro com base em documentos históricos consultados pelo autor, “para satisfazer as necessidades urgentes dos portugueses, os militares alemães aceitam atrasar as suas próprias entregas”.

Quando Braço de Prata recebe licença para o fabrico das G3, o ritmo de produção cresce a par do esforço de guerra. Num só ano, 1968, chegam a ser fabricadas mais de 67 mil espingardas, um volume muito superior ao de anos anteriores e que não voltou a ser igualado. Ao todo, entre Braço de Prata e as Indústrias Nacionais de Defesa, em Moscavide, foram fabricadas mais de 442 mil G3 entre 1963 e 1988. O grosso da produção foi até 1974: mais de 381 mil armas.

As espingardas eram muitas vezes despachadas de Lisboa directamente para a guerra. Joaquim Lobo, agora com 82 anos, recorda o dia em que viu as armas serem desempacotadas à frente dos seus olhos. Foi no Campo Militar do Grafanil, em Luanda, em Julho de 1964: “As nossas G3 só foram entregues ali à chegada. Assisti à abertura das caixas em que vinham, foram distribuídas, registados os números e entregues a cada um de nós”, lê-se. Os carregadores estavam vazios, mas “aconteceu depois uma surpresa”, relatou. “No meio dos 400 homens, houve alguém que apertou o gatilho e a arma disparou um tiro.”

Finda a guerra, depois do 25 de Abril, a G3 torna-se a arma da Revolução. A tal ponto que, em Abril de 1975, Jean-Paul Sartre visita Lisboa para uma série de conferências e desloca-se ao Ralis (Regimento de Artilharia de Lisboa), onde é fotografado com uma espingarda nas mãos.

A espingarda viria a ser substituída definitivamente em 2019 por um modelo tecnologicamente mais avançado, a SCAR, não sem antes ter sido usada em várias missões portuguesas no estrangeiro, como as da República Centro-Africana. Apesar disso, não esmoreceu o culto e o fascínio em volta da “saudosa G3”, como se lê logo na introdução.

O livro é apresentado esta sexta-feira, às 17h30, no Palácio dos Marqueses do Lavradio, em Lisboa.

Foto
Saída da chaimite "Bula" do Quartel do Carmo, no dia 25 de Abril de 1974, com Marcello Caetano a bordo Fundação Mário Soares
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