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Minhas desventuras linguísticas e seus divertimentos
Com o tempo, aprendi a tirar o que de melhor as diferenças linguísticas têm para nos dar. Incorporei palavras e expressões ao meu vocabulário e que deslizam até a ponta da língua quando as utilizo.
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Era meado de um gélido setembro no Porto, nas cadeiras de uma sala de mestrado da Faculdade de Economia. Naquele tempo, o esforço para compreender o português lusitano e ainda tomar notas do que diziam os professores era colossal. Fazia frio, mas eu chegava a suar para ter algum registro (ou registo) da lição. O debate em classe era sobre empregabilidade. Uma querida professora resolveu utilizar-me como exemplo e perguntar se eu pretendia, findo o curso, trabalhar em Portugal.
Até aquele momento, não tinha a clareza necessária para responder àquela pergunta, pois havia tirado aquilo que gente chique chama de ano sabático, mas que eu cuidei de batizar, para a minha realidade, como um ano "estudiático". Não sabia, portanto, o que viria pela frente, mas respondi que sim para não prejudicar o raciocínio acadêmico dela.
Prosseguindo, a mestra afirmou que, do início da procura por trabalho até uma contratação, poderia decorrer um período extenso, dadas as taxas de empregabilidade de cada carreira. Por isso, perguntou o que eu faria para sobreviver até lá, no que eu, desavisadamente, respondi: Ah, posso ir fazendo uns bicos enquanto isso. A turma riu como se não houvesse amanhã. E foi assim que eu inaugurei minhas desventuras linguísticas por aqui. Se você não sabe o motivo de tanta graça, recomendo fortemente que procure saber.
Com o tempo, aprendi a tirar o que de melhor as diferenças linguísticas têm para nos dar. Incorporei palavras e expressões ao meu vocabulário e que deslizam até a ponta da língua quando as utilizo: "Pois, se calhar, dá-me jeito, vamos a isso". E passei a colecionar episódios memoráveis, dos quais ainda me rio até hoje.
Como não se compadecer quando um colega português diz que acordou "cheio de pica"? Para um carioca da gema do ovo, é quase instintivo oferecer ajuda numa situação delicada como essa. O coração aperta, mas depois se descontrai ao lembrar que, por aqui, acordar assim é um excelente sinal de vigor e de um dia promissor que virá. É um alívio imediato.
Minha primeira vez com as picas, uma palavra também polissêmica em Portugal, porém, foi no contexto de um jantar de negócios, onde havia apenas brasileiros à mesa, num restaurante ao pé do Mosteiro dos Jerônimos. O ambiente estava um pouco tenso, pois vínhamos de uma negociação bastante difícil e que ainda se prolongaria durante o restante da semana.
O líder daquele grupo de empresários chamou o garçom e perguntou: "Qual é a especialidade da casa?" No que foi prontamente respondido: "São as picas. Temos diversas opções aqui na ementa". Todos se entreolharam e caíram na gargalhada, inaugurando uma noite que terminou com uma generosa dose de Licor de Merda. O negócio foi fechado no dia seguinte.
No país que promove, anualmente, a famigerada Feira da Foda, há um irresistível convite para retornar à quinta série que habita em cada um de nós. Será imaturidade de nossa parte? Pode ser, mas eu duvido muito que você não ria, ainda que discretamente, claro, ao ver os rótulos dos vinhos Rola e Periquita, estrategicamente posicionados lado a lado no supermercado. Seguramente, isso é obra de algum brasileiro. É um daqueles momentos em que a vida dá aquela piscadela-cúmplice e diz: “pode achar graça, ninguém está vendo”.
A coluna desta semana presta, portanto, um serviço público. Serve para ajudar os nossos compatriotas que aqui há não muito chegaram a evitarem os dissabores e constrangimentos linguísticos pelos quais, absolutamente inocente, passei quando imigrei. Provavelmente, muitos de vocês tem histórias semelhantes para compartilhar. Lembrem-se delas; são a doce memória de um processo incrível que é atravessar o oceano e (re)aprender a viver. E achem piada de si próprios, como se diz por aqui. Afinal, rir é, cada vez mais, o melhor remédio.