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Com os romeiros de São Miguel: uns rezam, outros fotografam
Novo livro de Jorge Barros junta as suas fotografias às do filho, Pedro, para construir uma narrativa visual que evoca uma tradição religiosa com séculos. A fé, os homens e a sua ilha.
Caminham durante a quaresma para fazer um pedido ou agradecer um favor. Fazem-no com mais ou menos fé, mas sempre da mesma maneira, porque só assim se cumpre uma tradição que, acreditam muitos, tem 500 anos. Levam mantas a servir de xaile e põem lenços coloridos de motivos tradicionais sobre os ombros ou na cabeça. Na mão transportam uma vara, ao pescoço um terço e às costas um saco de pano com roupa e comida, a sovadeira.
São romeiros e percorrem juntos, durante oito dias, todo o perímetro da Ilha de São Miguel, por estradas e veredas, rezando ou cantando em todas as capelas e oratórios dedicados à Virgem Maria. Começam a andar antes de o sol nascer e só param ao anoitecer.
Foi no anos 80 que Jorge Barros, fotógrafo veterano devoto dos Açores — percorreu-os incansavelmente e mostrou o que viu em exposições e livros vários —, entrou em contacto com esta peculiar romaria que antecede a Páscoa nas ilhas atlânticas e não resistiu a acompanhar, com as suas câmaras, os ranchos de homens e rapazes que nela participavam, tantas vezes dando continuidade a um hábito familiar de gerações e gerações.
Romeiros da Fraternidade (Letras Lavradas, 2024, com o apoio da Sociedade Portuguesa de Autores), o volume que acaba de lançar, junta fotografias por ele feitas entre 1994 e 2014 às do seu filho, Pedro Barros, arqueólogo que se associou a esta peregrinação que os micaelenses também conhecem como o “correr da costa” em 2023.
Ao registo de pai e filho, que tantas vezes faz o leitor duvidar que esteja a olhar para imagens da última década do século XX ou das primeiras do XXI, juntam-se neste livro as palavras de Onésimo Teotónio Almeida — o filósofo e escritor nascido em São Miguel em 1946 assina a breve introdução deste volume de 220 páginas — e de inúmeros autores portugueses, ou não fosse Jorge Barros um homem de livros e de escritores.
José Tolentino Mendonça, padre e poeta, não podia faltar, sendo ele quem nesta obra fala directamente do que une aqueles romeiros, para além da fé: “A consciência de que precisamos todos uns dos outros, que/ ninguém se pode salvar sozinho, e que o nosso mais precioso/ recurso é a fraternidade.”
Folheia-se Romeiros da Fraternidade com curiosidade e espanto, primeiro com muitas perguntas sobre aquela tradição que terá nascido de uma catástrofe (um sismo na ilha, que matou milhares em 1522) e que o tempo parece incapaz de ameaçar, e depois com a reverência devida aos que, com a força das suas convicções, vencem o cansaço caminhando oito dias expostos à chuva, aos ventos e ao nevoeiro cerrado que, por vezes, só permite avançar porque alguém confirma o trilho a cada passo.
“Mais importante do que haver deuses e milagres/ é acreditar que os há”, escreveu Natália Correia, nuns versos que o livro traz à memória, junto a outros de Sophia de Mello Breyner, que nos convidam a olhar para estes romeiros como quem pede por eles: “Pelos rostos de silêncio e de paciência/ [...] E pelos rostos iguais ao sol e ao vento.”
Jorge e Pedro Barros fotografam estes homens a caminhar entre as árvores em formação, de passo tão acertado como se seguissem numa coluna militar; ajoelhados nas ruas; a rezar nas igrejas; a beijar a cruz à entrada de uma capela. Fotografam-nos, também, em interacção com as pessoas com quem se cruzam nas localidades por onde passam, recebendo tratamento para os seus pés exaustos, partilhando uma refeição num pavilhão multiusos, a uma mesa que acomoda muitos, ou numa casa de família, noutra que acomoda poucos.
“A minha mão estendida e tímida não pede./ Dá”, nas palavras do poeta António Gedeão, apropriadas quando se trata de lembrar todos os que vão ao encontro dos romeiros para lhes oferecer água ou lhes abrir a porta das suas casas para que ali pernoitem.
Momentos de descanso ou de oração marcam jornadas diárias em que, por vezes, é a paisagem e o silêncio que se impõem: “Silêncio de paz rezada/ Jaz no fundo dos atalhos” (José Afonso).
Se em livros anteriores, como As Ilhas Desconhecidas (edição de autor, 2012), obra de Raul Brandão que “traduziu” em imagens, Jorge Barros deixou que fosse a geografia das ilhas a tomar conta da narrativa visual que construiu, em Romeiros da Fraternidade delegou a tarefa, como não poderia deixar de ser, nas pessoas. Pedro Barros fez o mesmo. Afinal, é da relação do homem com o espiritual, e dos homens entre si quando reunidos em torno de um mesmo propósito, de uma mesma tradição, que tratam estas fotografias que chegam a comover, no olhar do rapaz que, de cruz na mão, desafia o fotógrafo, no sorriso que antecipa um abraço e no romeiro que vai sozinho à frente do rancho.
No próximo ano os ranchos voltarão ao “correr da costa” e talvez alguns dos peregrinos venham a sentir como verdadeiro o verso de Ruy Belo que Jorge Barros escolheu para este novo livro: “Espero pela manhã como quem nasce.” Lucinda Canelas