Chamavam-lhe a Wall Street Negra. Há 103 anos, o bairro de Greenwood, em Tulsa, no estado norte-americano do Oklahoma, era um oásis de prosperidade na América negra, sede de centenas de comércios e empresas de afro-americanos, morada para as suas famílias de classe alta, e um palco vibrante de música, dança e teatro. Era sobretudo um farol de esperança, um exemplo do que deveria ser possível alcançar mas era normalmente negado no resto do país.

O farol extinguiu-se nos dias de 31 de Maio e 1 de Junho de 1921. Com armas, archotes e até bombas incendiárias largadas a partir de aviões, num dos primeiros exemplos históricos de um bombardeamento aéreo de uma população civil, Greenwood foi transformada em ruínas. Um cenário de guerra no coração dos Estados Unidos e em plenos roaring twenties.

Na origem de uma vaga de indescritível violência, uma peça de jornalismo irresponsável. Um jornal, o Tulsa Tribune, saía para as bancas na tarde de 31 de Maio com uma manchete incendiária: "Preto detido por atacar rapariga num elevador". A publicação escrevia que, no dia anterior, Dick Rowland, um engraxador negro de 19 anos, teria rasgado a roupa de Sarah Page, uma ascensorista branca de 17 anos, numa loja na baixa de Tulsa, insinuando que só não teria acontecido o pior graças aos gritos da alegada vítima e à rápida intervenção de outro funcionário.

Dois dias pois, outro jornal da cidade, o Tulsa World, desconstruía a primeira manchete: o polícia que registou a ocorrência e que falou com Sarah Page garantia que a primeira notícia tinha sido exagerada – "um relato colorido e falso", sentenciou – e que a suposta vítima nem tinha apresentado queixa. Soube-se depois que Dick Rowland teria apenas pisado acidentalmente a jovem, ou tropeçado nesta, e que o alarme despropositado foi dado pelo funcionário da loja, e não pela ascensorista. 

Mas o que é hoje um problema já o era há 103 anos: a notícia sensacionalista corre mais depressa do que qualquer desmentido oficial. Entre a primeira e a segunda publicação, Greenwood ardeu. 

A violência começou ainda a 31 de Maio com um cerco à esquadra de polícia para onde Dick Rowland foi inicialmente levado (e de onde saiu sem ser acusado de qualquer crime), e com confrontos sangrentos entre uma multidão branca enfurecida e uma comunidade negra alarmada com o risco de um iminente linchamento. Durante a noite, e sobretudo a 1 de Junho, os confrontos transformam-se num pogrom metódico contra os negros de Greenwood.

O número de vítimas do massacre de Tulsa permanece incerto, mas fala-se em cerca de 300 mortos. Mais claro foi o fim da Greenwood negra, que nunca mais recuperou o estatuto e a prosperidade iniciais, apesar de décadas de programas de investimento público (hoje criticado por ter beneficiado sobretudo a população branca e acelerado a descaracterização e gentrificação do bairro).

Apesar da dimensão do massacre, o episódio foi omitido dos jornais, dos livros de história, dos manuais escolares e do debate público norte-americano durante longas décadas. Traumatizados e discriminados, os sobreviventes e os descendentes das vítimas nunca conseguiram que fosse feita justiça em tempo útil (a mais recente tentativa, há um ano, apresentada pelas duas últimas sobreviventes centenárias do massacre, também foi rejeitada). 

É só em 1996 que o estado do Oklahoma começa a abrir os arquivos e a analisar o caso postumamente. E é muito mais recente, por volta do seu centenário, o momento em que a destruição de Greenwood se torna assunto nacional, com o reconhecimento formal do massacre pelo Presidente Joe Biden, com diversos trabalhos de fundo na imprensa, e com as referências ao episódio histórico em séries televisivas como Watchmen e Lovecraft Country, que ajudaram a inscrever o momento na cultura popular.

É ainda mais recente, de sexta-feira, a admissão de erro por parte das autoridades judiciais federais. O Departamento de Justiça acaba de publicar um relatório que contradiz as conclusões iniciais do antecessor do FBI, que na altura responsabilizava "homens negros" pela violência, e que enquadra agora o massacre de Tulsa não como um acto espontâneo e tresloucado, mas como um "ataque coordenado e militarizado" de brancos contra negros.

"Em 1921, brancos de Tulsa assassinaram centenas de residentes de Greenwood, queimaram as suas casas e igrejas, pilharam os seus bens e enclausuram os sobreviventes em campos de internamento", lê-se num comunicado do Governo norte-americano, onde também se responsabiliza a polícia local, entre a negligência e o conluio. 

Passado um século, o Departamento de Justiça diz o óbvio: já não é possível levar ninguém a julgamento pelo que aconteceu em Tulsa. Mas a reposição da verdade também é um acto de justiça. E permite-nos aprender, finalmente, com Tulsa. Com os riscos dos boatos, das falhas do jornalismo, do abandono da verificação de factos, dos políticos que contrapõem as percepções e sensações aos dados. Que aprendamos mais depressa, desta vez, e não daqui a 100 anos.

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