Isto não vai acabar bem!
“Porque é que eu não posso falar, Alemanha?”, perguntou a artista Nan Goldin na inauguração da sua exposição na Neue Nationalgalerie, condenando o clima de censura no país.
Na sexta-feira 22 de novembro, a Neue Nationalgalerie, em Berlim, inaugurou uma exposição da artista Nan Goldin. This Will Not End Well, uma retrospetiva organizada pelo Moderna Museet, de Estocolmo, já tinha sido exibida tanto nessa cidade quanto no Stedelijk, em Amesterdão, sem ter causado nenhum escândalo. Já em Berlim tudo correu mal.
Sem o conhecimento ou consentimento da artista, a Neue Nationalgalerie programou um simpósio com o título Art and Activism in Times of Polarization para discutir “o conflito israelo-palestiniano e o boicote aos artistas israelitas” a fim de coincidir com a inauguração. O tema sugere que a instituição teria a intenção de se distanciar de Nan Goldin por esta ter denunciado os ataques israelitas à população civil em Gaza, sem todavia informar a artista. Mas é difícil, se não impossível, manter segredos na era dos social media. Após ter tomado conhecimento das intenções da instituição, a artista comentou na rede social Instagram: “É claro para mim que este simpósio é um profilático, algo que o museu organizou para provar que não apoia a minha política e assegurar a sua posição no debate alemão”, e declarou a sua intenção de abrir a exposição com uma declaração sobre a política cultural da Alemanha.
Na tarde da inauguração, o museu fechou as portas por volta das seis da tarde para controlar a audiência, mas não antes de uma pequena multidão se ter juntado em ambos os lados das paredes de vidro da Neue Nationalgalerie. Nan Goldin subiu ao palco enquanto uma forte presença policial se fazia sentir a toda a volta da galeria, reforçada por seguranças no interior. “Porque é que eu não posso falar, Alemanha?”, perguntou a artista. Uma pergunta retórica, formulada para explicar porque decidiu "utilizar esta exposição como uma plataforma para amplificar a minha posição de indignação moral face ao genocídio em Gaza e no Líbano”. Enquanto a audiência irrompia em aplausos e gritos de celebração, intercalados por “Free Palestine” e “Fuck Germany”, Goldin condenou o clima de censura no país, mencionando os mais de 180 casos de eventos cancelados, criticou a apropriação da palavra “antissemitismo” para atacar aqueles que criticam Israel, e denunciou a violência estatal contra palestinianos.
Quando o diretor do museu subiu ao palco, a audiência não o deixou terminar. Klaus Biesenbach teve de esperar que a multidão dispersasse para poder dizer: “Para nós, o direito de Israel a existir é inquestionável.”
Estranha resposta, visto que Nan Goldin nunca questionou a continuidade de Israel como Estado. Mais estranho ainda foi ouvir o diretor afirmar o seu empenho em preservar a liberdade de expressão enquanto a sua equipa tentava remover ou bloquear os placards erguidos por trás do pódio. No dia seguinte, Joe Chialo, senador da Cultura em Berlim, também afirmou “o direito de Israel a existir”; Claudia Roth, ministra da Cultura, disse estar escandalizada com o discurso e posição política da artista; e Hermann Parzinger, o presidente da Fundação do Património Cultural Prussiano, afirmou: "Isto não corresponde ao nosso entendimento de liberdade de expressão.” Não consigo contar os artigos que foram publicados reproduzindo estes “talking points”, tal foi o tsunami de indignação mediática.
Quem tem vindo a acompanhar a discussão na Alemanha está habituado a esta rotina: o Estado alemão afirma-se empenhado em lutar pela liberdade de expressão, mas nem solidariedade com o povo palestiniano nem críticas à política de Israel podem ser expressas na esfera pública. Quem se atreve é sujeito a insultos, ameaças, assédio, perda de fundos ou despedimento.
No início de novembro, o Parlamento aprovou uma resolução com o objetivo de “garantir que nenhuma organização ou projeto que espalhe o antissemitismo, questione o direito de Israel a existir, apele a um boicote de Israel ou apoie ativamente o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) receba apoio financeiro”. Se estas medidas, por si só, já indicam existir uma interferência desproporcionada na liberdade de expressão, tanto científica quanto artística, no contexto das decisões do ICC e ICJ, elas revelam a bancarrota moral do Estado: a Alemanha visa erradicar todo o tipo de crítica dirigida a um Estado acusado de estar a cometer crimes de guerra numa proporção que se aproxima do quadro de genocídio.
Dada a responsabilidade histórica da Alemanha pelo Holocausto, é fácil atribuir a presente subserviência para com Israel a sentimentos de culpa. Mas estes argumentos são demasiado simplistas. O conteúdo de princípios morais, em geral, compreende-se melhor na forma como são “postos em prática”, como são empregues e para que fins. Na Alemanha, racismo e islamofobia são articulados na linguagem dos princípios. Permitam-me dar alguns exemplos. Ao contrário do discurso de Nan Goldin, nenhum deles mereceu atenção mediática.
Quando a colunista Nikki Columbus, colaboradora de The Nation, tentou pedir acreditação profissional para a conferência Art and Activism in Times of Polarization, a entrada foi-lhe negada. No dia anterior à conferência, a Neue Nationalgalerie enviou um email dizendo a todos aqueles que tinham reservado bilhetes que tinham de identificar os seus acompanhantes: “Até às 23h00 de hoje [23 de novembro]. Caso contrário, a entrada não será possível.” Os bilhetes não poderiam ser transferidos para um familiar ou amigo, e não seria permitido tirar fotografias, ou fazer gravações áudio ou vídeo durante o evento. Com curadoria de Saba-Nur Cheema e de Meron Mendel, a conferência reclamou ser “um espaço de diálogo para discutir o papel do conflito israelo-palestiniano no mundo da arte”. Na realidade, foi um espaço hipersecuritizado, onde tanto jornalistas como artistas reportaram ter-lhes sido intencionalmente recusada a entrada.
Depois de o jornal Die Welt ter publicado um artigo difamatório sobre um evento na Universität der Künste, Before/ After Palestine, em que as críticas que a organizadora, a professora Angela Harutyunyan, dirigiu à memória cultural alemã e que foram deliberadamente associadas como apoio e glorificação de “terrorismo”, o escritório de Harutyunyan na universidade foi vandalizado.
Na cidade de Leipzig, um grupo local reivindicou um ataque ao espaço cultural (pós-)migrante “Casa die ganze Bäckerei”, afirmando que “Antifa significa atacar antissemitas”. Os atacantes espalharam gordura de porco pelas salas, numa ação islamofóbica e que, ironicamente, também demonstra um total desrespeito pela população judaica.
Com a conivência tácita do Estado, a violência é externalizada para a sociedade civil, e a repressão é exercida por meios extralegais. Mas mais importante: estes e outros casos apontam para um desejo de mascarar o mais abjeto racismo em ditos apelos a ideais humanistas (a luta contra o antissemitismo) para que a opressão das minorias, e sobretudo da minoria árabe, possa parecer uma causa progressista, e até mesmo antirracista.
Ao mesmo tempo, neste último mês, o Senado de Berlim anunciou que mais de 130 milhões de euros serão cortados do orçamento cultural da capital com efeito imediato. O Berliner Programm Künstlerische Forschung (programa de pesquisa artística de Berlim), para dar apenas um exemplo, sofreu cortes de 56% a meio de um ciclo de financiamento de dois anos, naquilo que parece ser fruto de uma decisão ideológica e não económica que, combinada com as restantes políticas do Estado, pode ser lida como uma luta contra a democracia e o pluralismo, travada em nome do antiuniversalismo insular dos principais líderes de opinião do país. Como o título de Nan Goldin preconiza: isto não vai acabar bem!
A autora escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico