O Coração Ainda Bate. O silêncio e a verdade
Um filme, duas mulheres. Todas as mulheres.
Vi o filme sobre Lee Miller a que Kate Winslet deu rosto e do qual foi também produtora. É um filme sobre as atrocidades da guerra, do Holocausto, mas é sobretudo um filme sobre uma mulher invulgar: Elizabeth Miller, uma americana que foi modelo, que amava a fotografia, que trabalhou com Man Ray, com quem acabaria por se envolver, que foi amiga de Picasso ou do poeta Paul Éluard e que se tornou uma notável fotógrafa de guerra. Miller andou três semanas com a mesma roupa colada ao corpo, conduzindo um jipe, fotografando o inominável, engolindo o cheiro da morte. Miller acabaria por chegar à casa de Hitler, em Munique, já ocupada pelos militares (Hitler ter-se-á suicidado nesse mesmo dia, ao lado de Eva Braun), casa essa onde tomou o banho que lhe valeu a sua fotografia mais icónica, múltipla de leituras.
A verdade é que Lee Miller, que morreu em 1977, arrumou as suas fotografias durante muitos anos, até serem descobertas pelo filho. Estava ali um pedaço da história da humanidade que felizmente foi resgatado. Também é por isso que podemos falar dela agora.
Kate Winslet, numa interpretação notável, como referia o Guardian (que deu quatro estrelas ao filme), é Lee Miller num filme da realizadora Ellen Kuras. Foi Winslet, enquanto produtora, que insistiu que o filme teria de ser realizado por uma mulher. Nada é por acaso. Sim, é um biopic que estará aqui e ali edulcorado, mas isso não é, para mim, relevante. É um filme de mulheres, em que as mulheres se identificam. Em que os abusos foram silenciados, em que o silêncio se tornou na arma possível.
Era, na verdade, sobre Kate Winslet que queria falar hoje. Porque vemos o filme e acreditamos nela. Porque Winslet é uma mulher real que nos representa, que não cede no seu corpo e nas suas rugas. Tem a força da verdade e a verdade pode ser escondida num sótão durante muitos anos, mas acredito que vê sempre a luz do dia, como as fotografias de Lee Miller.
Winslet não é somente a rapariga do Titanic. Acredito que muitos críticos misóginos ainda a queiram ver assim. Winslet ganhou uma força comparável a um tanque de guerra que trucida qualquer coisa à sua passagem e é brilhante em Mare of Easttown, Mildred Pierce, O Leitor, Pecados Íntimos ou Revolutionary Road.
Com o tempo, Winslet tornou-se uma mulher que representa milhões de mulheres no mundo. Tem 49 anos e não está interessada em disfarçá-los, antes emerge dela uma verdade que vem do corpo cheio, das marcas no rosto.
Lembrei-me, no decorrer desta crónica, de um livro que me marcou muito: “As Dioptrias de Elisa” de António Gancho, também ele ligado ao surrealismo, como Lee Miller. Elisa era uma mulher que, não sendo bonita, escondida nos seus óculos fundos, parecia condenada a não ter direito ao prazer, à sensualidade. Leiam o livro se puderem. Muitos de nós consideram que as mulheres que não cabem num S são também inferiores, condenadas pela sua aparência. As pessoas, de uma maneira geral, preferem o logro à verdade. Preferem mentir sobre a idade e o corpo a terem que se enfrentar. Que as gordas e velhas não podem ser sensuais ou ter direito ao prazer.
Sei, sinto, que a sociedade cresce misógina. Por isso Elisa, que era da ficção de António Gancho, me marcou tanto. Por isso Winslet, que nos cospe no ecrã a sua verdade sem filtros, me interessa tanto ouvir e seguir.
Sim, ela representa-me. Ainda bem que, com as devidas ressalvas a tudo o que um biopic faz pelos seus protagonistas, ela deu corpo e voz a Lee Miller. E exigiu que fosse uma mulher a realizar o filme. Miller gostaria agora de perceber que nada foi em vão.
A verdade nunca é em vão. O nosso silêncio terá uma voz.
O coração ainda bate.