O medieval Brasil dos entres

A construção da língua portuguesa se deu entre o atraso e o moderno, entre o profano e o sagrado, sempre rompendo fronteiras para conciliar os vários opostos.

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Na casa de minha avó portuguesa havia, logo à entrada, um aparador. Sobre ele descansava um pequeno Buda de gesso, posto de costas para a porta com uma nota colada na parte inferior. Do lado esquerdo, uma guia de santo pendurada na parede. Mais para o lado direito, uma Bíblica aberta no Salmo 91 e, em cada um dos lados, uma imagem religiosa: Nossa Senhora de Fátima e a Rainha Santa Isabel. Eu ficava deslumbrado com todos aqueles signos de religiosidade misturados sem muita ordem, que podiam ser lidos como a garantia felicidade para a vida cotidiana.

Minha avó viera para o Brasil com suas duas filhas já bem depois do meu avô. Há muitas histórias sussurradas de família sobre o porquê dessa demora, mas nunca se pôde falar delas em voz alta. Disse-me, uma vez, minha avó, em segredo, que era porque meu avô tinha arrumado outra e que foi a muito custo que os irmãos dele lhe tiraram essa ideia da cabeça, mas que a culpa nem era dele, porque se sabia de fonte segura que ele havia sido enfeitiçado.

O historiador francês Jacques LeGoff defende que aquilo a que chamamos de Idade Média seja visto mais pela óptica do pensamento do que da cronologia. De forma muito simplificada, defende que ninguém dorme com a mentalidade medieval e acorda com um jeito totalmente novo de pensar, inundado de ideias de modernidade e renascimento. Ainda mais em uma sociedade fortemente agrícola e com altos índices de analfabetismo. E essa era a realidade do Portugal que se lança ao mar e que chega ao continente americano: ideias modernas praticadas por pessoas que, na sua maior parte, ainda pensavam e agiam a partir de um modo medieval de ser.

Uma das características desse pensamento medieval é a constante fusão, em uma única realidade, do profano e do sagrado, daquilo que é imanente ao cotidiano com o que lhe é transcendente. O resultado é um sagrado medieval que não se reduz à esfera cristã. Pululam no maravilhoso medieval fadas, trasgos, meigas, lobisomens e muitos outros vistos como parte de uma única realidade, aquela que todos os dias conforma e define quem somos.

Quando os navios de Cabral, em 2 de maio de 1500, seguem a sua viagem, deixam, nas terras do que viria a ser, em um futuro distante, o Brasil, quatro pessoas. Quatro tristes histórias obrigadas a se reconfigurar a uma nova realidade: dois chorosos degredados obrigados a aqui ficar e dois grumetes desertores que escolheram fugir dos maus tratos frequentes a que eram submetidos. Uns e outros definidos por um modo de pensar medieval que não define as fronteiras entre o espiritual e o material.

Os degredados, Afonso Ribeiro e João de Thomar, tinham a missão dada por Cabral de iniciar a conquista do povo que vivia pela disseminação da fé. Já os grumetes vão contra as instruções oficiais, escolhem a desobediência para (re)construírem a sua história. Os degredados retornaram 20 meses depois à Europa: o fim do castigo. Já os grumetes fugiram pela floresta adentro e nunca mais deles se soube.

Quatro pessoas que devem ter aprendido as línguas locais, mas que não deixaram de conversar entre si em português, um português de pessoas simples, atravessado pela forma de pensar e sentir o mundo, em que o sobrenatural nada mais era do que outro modo de a natureza se manifestar. E, desse modo, explicavam aquilo que iam descobrindo e não compreendiam.

Há quem veja nessa cena um quadro quase profético dos que para esta terra vieram. De um lado, aqueles que aqui chegam obrigados a ficar e que muito lamentaram aqui estar. Alguns desses conseguiram, passado o tempo, retornar para a terra natal. De outro, os que, a exemplo dos degredados, ousaram desobedecer a lógica instituída e ficaram em busca de uma nova vida, cansados que estavam dos sofrimentos da anterior. Há os degredados que lamentam o atraso aqui encontrado e choram a ausência da civilização e há aqueles a que nenhum direito lhes foi dado, sequer o de lamentar, e houve também os desertores que assumiram os riscos da mudança voluntária.

Não há heróis entre essas pessoas e, no entanto, cada um a seu modo e — um pouco ou um muito — assim o é. Há, isso é certo, pessoas transformadas pelo contato com esta terra tropical, campo fértil para que nela se plantem as mais variadas narrativas. No Brasil, minha avó plantou a alegria de reencontrar o marido e fugir da fome que encontrava suas origens no governo de Salazar. Minha mãe encontrou um galego com que casaria para desgosto de uma parte da família, porque da Espanha nada bom poderia vir.

No Brasil, nasci eu, que, apaixonado por tantas histórias, decidi estudar essa minha língua que amo tanto e que deveria unir todas essas realidades neste chão. Terra que ainda hoje mistura modos opostos de pensar e até de falar e que guarda de sua herança medieval a capacidade de abrigar em si esses mais variados opostos, desconstruindo as fronteiras daquilo que, por vezes, parece ser o razoável. Mas o que é o razoável senão outro modo de sentir a vida?

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