Silvia Pinal (1931-2024), a mais diabólica actriz de Buñuel

Uma das mulheres mais populares no México, do cinema ao teatro e à política, morreu aos 93 anos. Silvia Pinal costumava dizer: “Fui eu quem escolheu Buñuel, não foi ele que me escolheu a mim”.

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A actriz Silvia Pinal em Viridiana (1961), de Luis Buñuel wikicommons images
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Na Europa, conhecemo-la sobretudo pelo trio de filmes que fez com Luis Buñuel, Viridiana, O Anjo Exterminador e Simão do Deserto, na primeira metade da década de 1960 do século XX. Mas a actriz, uma das últimas lendas sobreviventes da época a que se costuma chamar “a idade dourada do cinema mexicano”, e possivelmente a maior dessas lendas, já era uma estrela quando se encontrou com Buñuel, e continuou a sê-lo depois disso.​ Silvia Pinal, nascida em Guaymas, no estado mexicano de Sonora, em 1931, morreu ontem aos 93 anos num hospital da Cidade do México, como divulgou a imprensa mexicana.

Ao longo de 75 anos, desde o primeiro filme, em 1949, e até ao momento da sua morte, ​Silvia Pinal foi uma das mulheres mais populares no México, no cinema, na televisão, no teatro, na vida social e até na política (nos anos 1990 foi eleita como senadora e deixou trabalho feito em causas culturais e ecológicas). Uma das últimas obras do pintor Diego Rivera foi um retrato dela, pintado em 1956, um ano antes da morte do artista. Há uma lenda por trás do quadro, Pinal dizia que tinha sido uma oferta de Rivera, as más-línguas diziam que tinha sido uma encomenda e que Pinal tinha pago o quadro – seja qual for a verdadeira história, serve como boa medida do impacto de Pinal na cultura mexicana.

Os seus primeiros anos foram passados em filmes muito populares (como “partenaire” de Cantinflas, por exemplo), mas que não deixaram um lastro de nobreza na memória cinéfila mundial. Mesmo a sua colaboração com os vultos do melodrama mexicano, hoje mais cultivados, foi reduzida (apenas um filme com Emilio Fernández, por exemplo). Nem foi especialmente memorável a breve passagem pelo cinema europeu nos filmes que fez em Itália e Espanha no final dos anos 1950, e que corresponderam a um primeiro momento de internacionalização de uma actriz que, curiosamente, nunca olhou para Hollywood como olham hoje as vedetas mexicanas: o seu único filme nessa vizinhança foi uma bizarra co-produção mexicano-americana do final dos anos 1960, Shark!, dirigida por Samuel Fuller, e onde contracenou com Burt Reynolds.

Uma despedida no México

As letras de ouro de Silvia Pinal na história do cinema mundial gravaram-se no encontro com Buñuel. É um bom indicador da curiosidade intelectual da actriz, e da sua vontade de sair das rotinas populares, o facto de ter sido ela (que na altura era casada com Gustavo Alatriste, produtor de vários dos filmes mexicanos de Buñuel) a ir ter com ele: propôs-lhe uma adaptação da Tristana, de Pérez Galdós, que não se fez então mas cuja ideia Buñuel passou a transportar, concretizando-a em 1970, já na Europa, com Catherine Deneuve no papel principal. Mas estava escrito que era pela porta de Pérez Galdós que Silvia Pinal entraria no cinema de Buñuel, e isso veio a acontecer em Viridiana (1961), onde foi a protagonista. Era o primeiro filme espanhol de Buñuel desde antes da Guerra Civil, ganhou Cannes e deixou o regime franquista à beira da apoplexia. Um presente envenenado que Buñuel deixou em Espanha antes de regressar ao México.

Fez ainda O Anjo Exterminador, filme “coral” mas onde Silvia Pinal tinha um dos papéis mais proeminentes. Buñuel estava no auge da fama, os produtores europeus chamavam por ele, e aceitou fazer O Diário de uma Criada de Quarto em França. Queria levar Pinal e Pinal queria ir – até começou a aprender francês, para aguentar um filme inteiro falado nessa língua, mas o produtor Serge Silberman preferiu uma vedeta francesa, Jeanne Moreau, e assim se gorou a possibilidade de uma carreira de Pinal no cinema de autor europeu.

Mas ainda havia uma despedida a fazer no México: em Simão do Deserto, de 1965, último filme mexicano de Buñuel, Silvia Pinal foi a encarnação do Diabo que tenta o ascético Simão, num papel de uma exuberância perversa quase mais buñueliana do que o próprio Buñuel, e de uma ousadia tremenda, sobretudo na nudez ou semi-nudez de alguns planos, se pensarmos que aquilo era o México de 1965. Na criteriosa demolição dos instintos machistas da sociedade mexicana que Buñuel operou durante uma década e meia naquele país, Silvia Pinal foi a sua mais espectacular e mais diabólica cúmplice. E como costumava dizer: “Fui eu quem escolheu Buñuel, não foi ele que me escolheu a mim”.

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