Ontem, numa farmácia, um senhor adulto e presumivelmente autónomo não conseguiu responder a perguntas básicas da farmacêutica sem recorrer à esposa por telefone. Não uma, mas duas vezes. Este episódio, tão trivial quanto recorrente, é o reflexo de um padrão cultural que a sociedade insiste em ignorar: a dependência masculina na gestão do quotidiano, que sobrecarrega as mulheres e perpetua papéis de género profundamente enraizados. É um ciclo alimentado pela cultura, mas também por uma poderosa aliada: a indústria do marketing.
Apesar de décadas de luta por igualdade de género, a realidade persiste. Muitos homens delegam às mulheres decisões que vão desde a gestão da casa até questões simples, como a escolha de um medicamento. Este comportamento, frequentemente disfarçado de distracção ou falta de jeito, é na verdade um comodismo enraizado: homens que se habituaram a que alguém decida por eles. Enquanto isso, as mulheres, já sobrecarregadas, tornam-se gestoras invisíveis de tudo o que envolve a vida familiar e prática.
Essa dinâmica cria uma realidade em que, ao enfrentar tarefas simples — como responder a perguntas sobre um medicamento ou escolher um produto —, muitos homens não são autónomos para o fazer. Afinal, foram instruídos para acreditar que essas decisões são responsabilidade das mulheres, enquanto eles assumem um papel secundário ou de mero executor.
Se a cultura é a raiz do problema, o marketing é o fertilizante que faz esse ciclo crescer. Muitos anúncios, campanhas e estratégias de comunicação reforçam o estereótipo da mulher como a principal responsável pela gestão do lar e da saúde familiar. Publicidades de medicamentos, por exemplo, frequentemente mostram mulheres a comprar remédios para os filhos, a orientar os maridos sobre o que usar ou ainda a serem “salvas” por estes perante uma possível gripe. Produtos de limpeza, alimentos e até seguros de saúde costumam ser direccionados às mulheres como se elas fossem as únicas capazes de tomar essas decisões.
Essa abordagem cria uma dualidade perigosa. Para as mulheres, gera a pressão de serem as "sabedoras" em todas as áreas práticas. Para os homens, reforça a ideia de que o papel deles é limitado ao cumprimento de tarefas delegadas, isentando-os da necessidade de participar activamente das decisões cotidianas.
O marketing também utiliza essas dinâmicas para fomentar o consumo. A ideia de que "a mulher sabe melhor" é estrategicamente explorada para vender produtos. Desde medicamentos até utensílios domésticos, as campanhas frequentemente comunicam que é a mulher quem deve tomar a decisão, porque ela tem "instinto" ou "experiência". Essa narrativa, além de reforçar a dependência masculina, transforma as mulheres em alvos constantes de estratégias de vendas, atribuindo-lhes a responsabilidade de consumir pelo bem-estar da família.
Por outro lado, a figura masculina é retratada de forma quase caricatural: o homem que “não sabe” ou “não entende” e precisa de ser guiado. Essa representação, longe de ser uma crítica, é utilizada como ferramenta de marketing, criando situações cómicas ou afectivas que naturalizam essa dependência. Assim, o ciclo perpetua-se: as mulheres assumem mais responsabilidades, os homens distanciam-se ainda mais, e as marcas lucram com essa dinâmica.
Por que isso persiste? Porque, de certa forma, é conveniente para todos. Os homens mantêm a sua zona de conforto e as mulheres, já habituadas a essa carga mental, continuam a absorvê-la, mesmo à custa da sua saúde e tempo.
É urgente que as marcas abandonem narrativas que reforçam estereótipos de género. Campanhas inclusivas e que promovam a igualdade de responsabilidades podem não apenas ajudar a mudar a mentalidade social, mas também atrair consumidores que valorizam a justiça e a modernidade nas relações.
Precisamos de reconhecer que este episódio não é um caso isolado, mas sim um reflexo de um padrão maior, sustentado por estruturas culturais e económicas que moldam o nosso quotidiano. Ignorar a dependência masculina, a sobrecarga feminina e o marketing que perpetua essas dinâmicas é aceitar que o ciclo continue. Somente ao enfrentar estas questões podemos viver uma sociedade onde, ninguém precise de começar uma conversa com: “Querida, o que é que eu digo?”.