Recurso ao sector privado e social para cirurgias em atraso pode “penalizar” ULS com menos recursos
Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares admite que a medida poderá ser uma solução, mas precisa de ser melhorada. E pede à tutela que acompanhe as mudanças.
A portaria que define as regras para o encaminhamento para hospitais dos sectores privado e social dos doentes que estão há demasiado tempo à espera para serem operados num hospital público, publicada esta quarta-feira em Diário da República, é "bem-intencionada e oportuna", segundo o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto. Porém, ignora as "particularidades" de cada unidade local de saúde (ULS), alerta o mesmo responsável, para quem as novas regras contêm o risco de penalizar as ULS mais depauperadas e com menos recursos humanos.
“Esta é uma portaria bem-intencionada. Temos milhares de doentes à espera de uma cirurgia e não discuto a oportunidade desta legislação. É oportuna e deve ser discutida. Mas não podemos ignorar que alguns hospitais estão em muito má situação”, explica o responsável.
Xavier Barreto não discute o facto de a factura a pagar pela cirurgia ter de ser suportada pela ULS de onde proveio o doente, até porque “a responsabilização financeira [das unidades do SNS] já existia”, isto é, “os hospitais já ficavam responsáveis pelos doentes que iam para o privado quando não os conseguiam operar em tempo útil”. Mas, insiste, "o diploma pode ter algumas melhorias para salvaguardar mais o SNS".
O diploma publicado esta quarta-feira visa melhorar o acesso à cirurgia não-oncológica e dar sequência à resolução da lista de espera nacional elaborada pelo grupo de trabalho do Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS), com recurso aos sectores social e privado, sempre que o doente concorde e quando esteja esgotada a capacidade de resposta nos hospitais do SNS.
Contudo, subsistem dúvidas quanto à operacionalização no terreno: “Há uma alteração na metodologia que define como se apuram ou identificam os doentes que podem ser intervencionados no privado, mas o diploma não é absolutamente claro quanto aos critérios” utilizados para que o utente passe a integrar essa lista. “Suponho que sejam os doentes que já ultrapassaram o tempo máximo de resposta garantida, embora o despacho não seja absolutamente claro”, refere Xavier Barreto.
Segundo a portaria, os utentes deverão ter uma data de agendamento de cirurgia registada até ao próximo dia 31 de Dezembro e a cirurgia deverá ser realizada, no máximo, até 31 de Agosto de 2025.
Terminado o prazo de 31 de Dezembro deste ano, caberá à Direcção Executiva do SNS (DE-SNS) avaliar a necessidade de medidas adicionais a adoptar relativamente aos utentes que não confirmaram a sua vontade de integrar a lista ou que não obtiveram agendamento cirúrgico.
Os hospitais que integrarem o plano seleccionam os utentes a operar, dando prioridade aos que têm maior tempo de espera para cirurgia. Quanto ao processo de adesão das entidades dos sectores privado e social, a portaria refere que depende da “outorga de um acordo de adesão extraordinário”, definido pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS).
Xavier Barreto insiste que é preciso olhar para cada uma das ULS e para a respectiva capacidade. “O [hospital] Amadora-Sintra, por exemplo, perdeu há pouco tempo metade do seu serviço de cirurgia geral. É difícil recuperar uma perda tão súbita. O que é que vai acontecer a este hospital? Os seus doentes que estão em lista de espera de cirurgia geral vão ser todos exportados para o sector privado? Não me parece muito racional”, defende o responsável.
“Há ULS que estão muito depauperadas, que têm graves problemas de recursos humanos e é muito importante acompanhar este tipo de iniciativas para reforçar e capacitar essas unidades. Caso contrário, estamos a condená-las, à partida, a serem mais penalizadas por este tipo de legislação”, evidencia ainda.
Ministra: “Sei exactamente quantas são as cirurgias” a ir para o privado
Perante as questões, que crê que as próprias ULS irão também colocar à tutela, Xavier Barreto diz esperar, enquanto representante da APAH, vir a debater o tema com o Governo.
Esta quarta-feira, a ministra da Saúde admitiu que os hospitais terão de recorrer aos sectores social e privado para concretizar o plano de forma planeada. “Sei exactamente quantas são as cirurgias que não vão ser feitas nos nossos hospitais e quantas vão ser feitas. Não é nada que me preocupe porque o nosso SNS responde muito bem (…). Este aprofundamento com os sectores social e privado acontecerá de forma planeada e não avulsa”, disse Ana Paula Martins.
Em declarações à agência Lusa, à margem de um encontro promovido pelo Centro Académico Clínico ICBAS-Santo António, no Porto, a governante explicou que, “num primeiro momento, na área dos doentes oncológicos”, o Governo fez “uma portaria de incentivos e toda a recuperação das listas de espera foi feita no SNS”. “Não recorremos ao sector privado e social porque tivemos capacidade instalada. Mas esta é a segunda fase e é mais difícil”, disse.
Sem avançar com números, Ana Paula Martins admitiu que “no SNS a procura é muito maior do que a oferta” e apontou que o modelo de referenciação dos cuidados primários para os hospitais tem de ser revisto. com Lusa