Olhar nos olhos pode ser revolucionário

Acredite, dividir o olhar com alguém, essa ação tão simples, e que se desdobra em perceber e reconhecer, também é um gesto político revolucionário. E dos melhores.

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Ao lado da Avenida Paulista, nesta que é uma das icônicas regiões da metrópole brasileira, a senhora permanecia dia após dia entre pilhas de pequenos cadernos. Muitos estavam visivelmente surrados. Se velhos por estado ou por tempo, não era possível identificar. Havia também pequenos restos e sobras de lápis comuns, sobreviventes com seus poucos centímetros. Não pedia ajuda, apesar de, isso sim, ser explícito, precisar. Sempre tranquila, com semblante leve e sem pressa. Não falava com os passantes, nem respondia às tentativas. Apenas escrevia.

Durante muito tempo, a senhora fazia parte da paisagem no meu percurso até a faculdade. Era impossível não a perceber. Mas o que escrevia, afinal? Descobri, ao me aproximar, disfarçadamente, que desenhava pequenos círculos, um ao lado do outro, linha a linha, com pausas a sugerirem pontuações e inícios e fins de parágrafos. A senhora escrevia seus pensamentos, suas memórias, sua ficção ou percepção da realidade? Havia método e coerência. Os círculos eram sua tradução a um vocabulário próprio, que lhe permitia existir por um gesto ativo à história e ao mundo.

Muitos anos se passaram, desde então. E foi neste, propriamente, em que, à espera do metrô em Almada, o senhor, com roupas surradas e sujas, também não pedia ajuda. Em mãos, não um caderno, mas um celular destruído. Sem dar atenção às pessoas ao redor, usava o aparelho com precisão dos dedos, com pausas e movimentos específicos de quem escreve uma mensagem ou posta nas redes sociais. Aguardava e voltada a digitar na tela rachada em muitas partes, e assim seguia em seu hábito e propósito.

Com quem falava? O que escrevia? O que lhe respondiam? Sua conversa seria amigável ou conflituosa, com uma ou mais pessoas, conhecidos, parentes, estranhos? Certo era escrever, e dialogava ou debatia sobre algo, talvez sobre ele próprio ou a vida; pode ser que escrevesse uma reflexão digna desse jornal, quem sabe um poema. Seus dedos no teclado imaginário também denotavam a busca por um gesto ativo no presente.

Em comum, entre a senhora de duas décadas atrás e o senhor de agora, está a vontade de participação e, por ela, certo exercício de pertencimento. Portanto, gestos sobretudo políticos. Não somente por suas condições. Políticos por serem afirmações de suas existências.

Se a participação simbólica confere alguma qualidade de presença política, por outro lado, encontramos diariamente quem responda não gostar de política, do assunto não lhe interessar, entre outras expressões de recusa e negação, acreditando a política caber aos profissionais e atitudes ativistas explícitas. Porém, realizamos escolhas políticas, mesmo quando optamos por não agir. Afinal, já diziam os gregos antigos, somos animais políticos.

Aristóteles defendeu a política ser uma manifestação humana, pois seríamos a única espécie consciente de sua busca por felicidade. O problema, explica, é apenas alguns possuírem a capacidade de abdicar de interesses pessoais em nome do bem comum necessário à felicidade de todos. Para ele, os melhores a isso não seriam os políticos profissionais e, sim, os filósofos. Isso tem graça por ele ser filósofo. Ou seja, nada é melhor para demonstrar o oportunismo humano do que seu próprio argumento.

A confusão das últimas décadas, em crescente expansão, expõe a contradição daqueles que fazem do gesto ativo de afirmação política a tentativa de recusa da política, como vemos nas escolhas por representantes “antissistemas”. A palavra ‘escolha’ é por si suficiente para embaralhar quaisquer contextos. Participa-se, então, sem reconhecimento de pertencimento, como se fosse possível não estar envolvido.

Essa ilusão de recusa, de suposta libertação da política, tem sido anunciada há muito tempo nos dois espectros mais próximos ao centro, tanto pela teoria da esquerda crítica, quanto pela direita liberal. Intelectuais diversos insistem em alertar sobre os perigos dos extremismos acríticos e propositais. Chegam a nós dezenas de livros sobre a falência da democracia, quando não de sua morte, do totalitarismo ideológico, das novas dinâmicas de construção da política, em sua face deformada e em plena condução catastrófica dos indivíduos para acreditar que o melhor é perder a liberdade ou boa parte dela, alguns direitos e afastar o Estado ao mais longe possível das decisões práticas, deixando ao mercado organizar as estruturas sociais.

A manipulação existe desde sempre, faz parte da política convocar estratégias para desviar e induzir os indivíduos ao que lhe interessa. A diferença, e isso importa pela radicalidade qual provoca, é o convencimento de recusar o pertencimento e de tornar a participação o oposto ao gesto ativo de afirmação. Na prática, uma espécie de presença pelo gesto passivo de submissão disfarçado de autenticidade daqueles que acreditam serem as redes sociais a ágora da nova política.

Surge, assim, outra cultura política e de fazer política. E, de maneira mais profunda, outra perspectiva de como nos percebermos no contexto do presente, do mundo e da história. Chegamos ao esfacelamento do significado civilizatório de nossa presença. Deixamos de ser animais políticos para nos abrigarmos em uma espécie de animais irreais. Isso nos exige o esforço de recuperar as relações enquanto sobrevivência a um real que ninguém mais é capaz de identificar qual seja. Portanto, o exercício de duvidar de si e do instante, entender os acontecimentos serem narrativas ficcionais, enquanto o real segue escondido nos entremeios do não dito.

Não resolverá mais abrirmos os cadernos e inventarmos formas de escrever nossos pequenos círculos, tampouco teclarmos imaginativamente acreditando em diálogos efetivos. É preciso a coragem de novos gestos ativos efetivos e conscientes de reaproximação. O que significa, em resumo, reinventar a micropolítica naquilo pode ser mais essencial. Incluir o diferente, por exemplo, é uma ação simples de afirmação, de pertencermos e participarmos em discurso político mais amplo e comum. Acredite, dividir o olhar com alguém, essa ação tão simples, e que se desdobra em perceber e reconhecer, também é um gesto político revolucionário. E dos melhores.

Sugestões de leituras:

> Capitalismo Canibal, de Nancy Frase. Autonomia Literária, 2024.

> A Sociedade dos Iguais, de Pierre Rosanvallon. Ateliê de Humanidades Editorial, 2024.

> A Sociedade Ingovernável: Uma Genealogia do Liberalismo Autoritário, de Grégoire Chamayou. Ubu Editora, 2020.

> Nas Ruínas do Neoliberalismo: A ascensão da Política Antidemocrática no Ocidente, de Wendy Brown. Editora Politeia, 2019.

> Por um Populismos de Esquerda, de Chantal Mouffe. Editora Gradiva, 2019.

> Politicídio: O Assassinato da Política na Filosofia Francesa, de Luuk van Middelaar. É Realizações Editora, 2018.

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