No Pinhal Novo, a sopa caramela é de feijão, couve e memória colectiva
A sopa de feijão com couve, outrora sustento de lavradores, foi resgatada em Palmela. Depois de conversas com os antigos, fixou-se uma receita e baptizou-se: a sopa caramela é a identidade da região.
Sopa de feijão com couve é um património nacional. As tonalidades da língua (e dos enchidos) ajudaram, de norte a sul, a torná-la específica e pessoal. Para uns é sopa de entulho, para outros, à lavrador e há quem lhe chame sopa à portuguesa, o que, não dando informações úteis sobre o conteúdo e podendo até induzir em erro, confirma a universalidade da sopa. No Pinhal Novo, em Palmela, este ícone nacional ganha outra importância: conta a história desta comunidade e ajuda a construir uma identidade. Por isso, em 2003, passaram a chamar-lhe sopa caramela.
No Restaurante Central, Cristina Pereira faz a sopa caramela conforme viu a mãe sempre fazer. Há quem faça refogados, quem passe o feijão e a batata para garantir o puré sedoso. Cristina Pereira, vencedora de uns quantos concursos para a melhor sopa caramela, põe toucinho e pá de porco, chouriço, feijão e batata a cozer e cerca de uma hora depois o caldo está grosso. Tira as carnes, junta a cenoura, os nabos e mais batata aos pedacinhos. No final, três couves migadas — coração, portuguesa, lombardo —, massa de cotovelos e as carnes cortadas aos pedaços. “Antes não ficava igual, igual. Fazia-se com o que havia e nem sempre havia nabo ou cenoura ou as carnes”, recorda.
Esta sopa encorpada, como é servida diariamente no restaurante do marido, foi durante a sua infância (e muito antes disso) uma sopa de dias de festa. Uma versão mais pobre comia-se dia sim, dia sim. “Com esta sopa alimentou cinco filhos”, diz. Dulce, amiga com 70 anos, que passa por aqui de visita, conta outra história que confirma a omnipresença desta sopa na vida do Pinhal Novo. “Eu ia estudar para Setúbal com o leite no estômago e vomitava sempre no comboio. A minha mãe começou a dar-me sopa ao pequeno-almoço e nunca mais vomitei. Adorava comer aquilo, ainda meio a dormir”.
Na sua casa, a sopa era melhorada, com as carnes servidas à parte, mas Dulce lembra-se de andar a brincar com outras meninas em casas com menos sustento: à lareira, o pote de três pernas, icónico, era deixado a cozinhar antes de saírem para o campo. “Deixavam uma gaze com uma bola de sebo pendurada, a pingar no tacho, todo o dia nas brasinhas. Quando vinha a dona da panela, baixava a bola de sebo para temperar a sopa”.
Caramelos do passado e do futuro
Estes gestos repetem-se no Pinhal Novo provavelmente desde o final do século XIX. Nessa altura estas terras eram despovoadas, apesar de muito férteis. A Herdade de Rio Frio tinha uma das maiores vinhas do mundo e o José Maria dos Santos, o proprietário, enviava contratadores às aldeias da Beira Litoral para lhe trazerem trabalhadores temporários.
Vinham da zona da Gândara, região arenosa e pouco dada à agricultura, entre Aveiro e Leiria, e ficavam na margem sul do Tejo por uns nove meses — os de maior trabalho no campo. Dormiam em camaratas com tarimbas de madeira corridas, onde cada um ajeitava as palhas à sua maneira. Na vila, chamavam-lhes simplesmente “caramelos” — ainda hoje não se sabe porquê. O termo era pejorativo e assim continuou até há pouco tempo.
“Era das pessoas da área urbanizada falarem dos rurais. Mas nós todos somos caramelos, há famílias aqui que têm nomes das aldeias da Beira — Tocha, Mira. Adoptámos este nome para tirar a carga depreciativa e contar a nossa história às crianças”, explica António Almeida, confrade da Confraria da Sopa Caramela, e que participa do programa educativo feito com a Junta de Freguesia. “O objectivo é ter quem continue a sopa caramela. Eles são os caramelos do futuro”, remata.
A apropriação do nome “caramelo” até tornar-se algo que enche de orgulho os pinhal-novenses não tem muito tempo e começa nos ranchos folclóricos. Foi nestes grupos que, no início dos anos 2000, se começou a valorizar a história e as memórias à volta desta sopa de couve e feijão: aperceberam-se de que não era apenas mais uma. “Quando os ranchos recebem outros grupos nas suas casas, querem oferecer algo da sua região e aqui começaram a fazer esta sopa. Como os lavradores eram chamados caramelos, chamaram-lhe sopa caramela,”, conta Luís Fernandes, presidente da Confraria da Sopa Caramela.
Para Luís Fernandes, esta sopa e outras tradições não se perderam “graças aos ranchos folclóricos. São eles que fazem recolhas sobre modos de vestir, músicas e gastronomia.” O baptismo do prato em 2003 iniciou a vontade de pesquisa e da criação de uma confraria para manter entusiasmo à volta do prato. Luís Fernandes e José Santos, dono do restaurante O Forno, foram dois dos fundadores e iniciaram conversas com algumas das pessoas mais antigas da freguesia.
“Quando fizemos a recolha já a sopa estava muito mais rica, estamos a falar da segunda e terceira geração de pessoas do Pinhal Novo, fomos falar com pessoas de 80 anos e não tenho dúvidas de que tiveram acesso a sopas melhores do que as primeiras pessoas que vieram para cá”, diz Luís Fernandes.
Caramelos de pedra e cal
Os caramelos assentaram na zona do Pinhal Novo já no início do século XX, quando o proprietário da grande herdade implementou um sistema de foros que permitia aos trabalhadores adquirir uma parcela de terra através do pagamento de uma renda. Ser dono de um pedaço de terra era a possibilidade de uma vida um pouco melhor e de uma velhice mais descansada. Os caramelos de ir-e-vir tornaram-se caramelos de ficar. Do que davam os seus pequenos terrenos faziam as sopas de hortaliça a que, na Gândara da sua origem, se chama sopa gandaresa.
“Era muito isto: couve com feijão. Depois levava o pingo de gordura ou um bocadinho de toucinho, que às vezes andava de sopa em sopa. Esta sopa é um sustento transversal a todas as zonas rurais do país. Aqui distingue-se pela qualidade dos produtos de Palmela”, afirma Luís Fernandes.
A migração da Beira (não só do litoral) que transformou o concelho de Palmela não ficou no início do século. Cristina Pereira está perto dos 50 anos e veio com os pais para o Pinhal Novo aos 13; António Almeida nasceu aqui, mas o pai era de Fornos de Algodres; o seu avô chamava-se João Ratinho — “ratinhos” eram os que chegavam da Beira Baixa. Em comum têm todos uma sopa que expressa um modo de vida e antes se via como facto sem ciência.
A partir das pessoas com quem falou, a Confraria criou uma receita que tem até uma versão vegana — sem as carnes, nem a batata, adaptada a diabéticos. Com a pesquisa local, programas educativos e organização de grandes eventos, como mercado de Natal, a Confraria da sopa caramela vai além da valorização e divulgação de um prato e tornou-se um exemplo de associativismo para a comunidade. O momento mais marcante no calendário é o Mercado Caramelo, que organizam com a Junta de Freguesia, em Maio. O próximo é o décimo e marca os 150 anos da realização do primeiro mercado no Pinhal Novo.
Até lá, há muita sopa caramela para comer. O seu auge é o Inverno. Serve-se em restaurantes locais como O Forno, O Telheiro ou em dias fixos em prontos a comer como o Café Bambi. No Restaurante Central só não se faz em Julho e Agosto. Nos outros dez meses há uma ardósia em destaque na montra: há sopa caramela. “Só sabemos que os clientes vêm de longe quando a sopa já acabou e me dizem, ‘Então eu vim de Lisboa e agora não há sopa?”, diz Rui Pinto, dono do Central.
Este é o único prato que Cristina faz para o restaurante, uma espécie de hobby, enquanto é técnica de segurança numa empresa de andaimes. Os dois tachos de 100 litros que faz por semana voam. “Será que sabes fazer isso nessa panela pequena?”, goza o marido à entrada na cozinha, perante os míseros 20 litros de caldo. Como não saberia? Cristina faz esta sopa há muitas gerações.
Este artigo foi publicado no n.º 8 da revista Solo.