Um roteiro em redor da riqueza que nasce nas areias de Palmela

No território da casta castelão, os laços familiares têm raízes tão fundas como as videiras que retiram do solo pobre o sustento para os tintos elegantes e longevos que marcam a identidade da região.

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Vindima de castelão na Herdade da Fonte, da Casa Ermelinda Freitas - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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Sobreiro monumental de Águas de Moura - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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Bernardo Cabral, enólogo da Herdade de Pegos Claros - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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Vinhas da Adega Fernão Pó, em Fernando Pó - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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Carne maturada no restaurante Sabores do Campo, em Pegões - Revista Solo, roteiro pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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Luís Cangueiro, coleccionador de máquinas musicais e proprietário do Museu da Música Mecânica - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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Montra de peixe do restaurante Estrela do Mar, em Lagameças - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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Grafonolas no Museu da Música Mecânica - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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João Palhoça, enólogo e terceira geração da família fundadora da Adega Fernão Pó, em Fernando Pó - Revista Solo, roteiro de enoturismo pelas areias de Palmela Goncalo Villaverde
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A data é incerta e o ano é uma estimativa. Mas permite o termo de comparação: em 1783, meio século antes de José Maria da Fonseca plantar a sua primeira vinha de castelão – que viria a originar o clássico Periquita e a definir a matriz dos vinhos tintos da região –, uma bolota germinou no cimo de um cabeço e dela nasceu um sobreiro. Uma história banal, aparentemente, mas só se ignorarmos que esse sobreiro ainda hoje se mantém de pé.

Na aldeia de Águas de Moura, o sobreiro monumental (também chamado “árvore do assobio”, devido à passarada que lhe povoa os ramos) ganhou honras de postal turístico, em especial após ter sido eleito Árvore Europeia do Ano em 2018. Vê-lo de perto é assombroso, pelo volume – são precisos três adultos para abraçar o seu tronco –, pela imensa cúpula de sombra que a copa forma, pelo facto de estarmos perante um ser vivo com 240 anos. Uma placa acrescenta alguns números ao espanto, como os 16 metros de altura ou as 1,2 toneladas de cortiça que dele foram extraídas de uma só tiragem.

Em redor há bancos de madeira, para que se possa contemplá-lo. Ninguém levará a mal que se comece uma viagem sentado.

A árvore, com as robustas pernadas que a ramificam e as raízes sólidas que lhe dão firmeza e sustento, torna-se a metáfora adequada para retratar um território onde as ligações familiares e ao chão são parte indispensável da história.

O sobreiro monumental de Águas de Moura foi eleito Árvore Europeia do Ano em 2018 Goncalo Villaverde
É preciso três adultos para abraçar o tronco do sobreiro monumental de Águas de Moura, que mede 4,15 metros de perímetro a 1,30 m do chão. Goncalo Villaverde
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O sobreiro monumental de Águas de Moura foi eleito Árvore Europeia do Ano em 2018 Goncalo Villaverde

A herança caramela

A ligação do apelido Palhoça aos vinhos também germinou em Águas de Moura. A família de João Loureiro Palhoça chegou à planície de areias de Palmela na primeira metade do século XX, como tantos outros trabalhadores deslocados, para trabalhar nas vinhas da Herdade de Rio Frio. “Suspeitamos que a família era do Norte”, conta Marta Palhoça, responsável pelo enoturismo da Quinta da Invejosa.

Essa população migrante, vinda sobretudo da Beira Litoral, desde meados do século XIX, ajudou a povoar o triângulo arenoso que se estende entre Pinhal Novo, Pegões e Marateca, e ficou conhecida como os “caramelos”. Inicialmente, era um termo pejorativo, até que começou a ser estudado e a ser reconhecido como parte essencial do património cultural do município de Palmela. Uma herança de trabalho, de esforço, de superação.

João Loureiro Palhoça, como tantos outros caramelos, trabalhou no campo. A dada altura, consegue abrir uma taberna em Águas de Moura, e esta acabou por se tornar também adega quando conseguiu comprar o seu palmo de vinha. Tal como a metafórica árvore, o negócio ramifica-se pelos seus filhos Mário, Filipe e João, que se tornaram também produtores, com empresas que estão hoje na mão das gerações seguintes.

Filipe Palhoça fundou a sua empresa em 1950, a partir da tal adega-taberna do pai. Ampliou-a, aumentou a área de vinha e fez-se ao mercado. Através do casamento, ficou também com a Quinta da Invejosa, propriedade do sogro Francisco Tiago Almeida, no Poceirão, que viria a tornar-se navio-almirante da casa.

A empresa manteve o nome Filipe Palhoça Vinhos, agora com o filho Nuno Palhoça e a sua mulher, Marta, ao leme e uma área de vinhas de 112 hectares em sistema de produção integrada – nas quais a casta castelão tem clara preponderância, “cerca de 70%”, estima Marta. Esta variedade está presente em todos os tintos de lote da casa e, a par de ser histórica na região, é vista por Nuno como uma casta de futuro. “É uma casta resistente”, afirmou Nuno Palhoça numa conversa anterior com a Solo, a propósito do tema da adaptação das vinhas às alterações climáticas.

As quase duas dezenas de castas produzidas pela casa estão expostas numa vinha pedagógica à entrada da quinta, junto da qual persiste um talhão da vinha original de castelão, que Francisco Tiago Almeida plantou há mais de meio século, de onde nasce o tinto Vinhas Velhas.

Marta Palhoça é a responsável pelo enoturismo na Filipe Palhoça Vinhos Goncalo Villaverde
Sala de barricas da Filipe Palhoça Vinhos, na Quinta da Invejosa (Poceirão, Palmela) Goncalo Villaverde
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Marta Palhoça é a responsável pelo enoturismo na Filipe Palhoça Vinhos Goncalo Villaverde

O território do castelão

Não é só nas vinhas da Filipe Palhoça Vinhos que o castelão é predominante. Segundo as contas da Comissão Vitivinícola Regional, corresponde a 60 por cento da região, com particular incidência nas areias do leste do concelho de Palmela. “É de longe a casta mais bem adaptada a estes solos”, explica Jaime Quendera, o irrequieto enólogo que, além de assessorar os vinhos da Filipe Palhoça e do seu trabalho a “tempo inteiro” na Adega Cooperativa de Pegões, tem também a seu cargo a enologia de Casa Ermelinda Freitas, Casal Freitas, Marcolino Freitas & Filho e Ti Bento – e isto apenas para referir os trabalhos na “vizinhança”.

Ele que também descende de caramelos, porventura originários da Galiza, e também tem as suas vinhas, para as quais, contudo, o tempo não lhe sobra. Marcamos encontro na sala de provas da Casa Ermelinda Freitas, em Fernando Pó, para descobrir os vinhos da Quinta da Mimosa, chancela que é significado de castelão de vinhas velhas, através de uma única referência que serve de bitola para compreender tanto a variabilidade entre anos como a fiabilidade da casta de ano para ano. Basta recuar um ou dois anos para perceber a versatilidade temporal do castelão. “Tanto envelhece bem, aguenta muitos anos, como é bebível em jovem, ao contrário de muitas castas que são boas em velhas mas imbebíveis em novas”, explica Quendera.

Quinta da Mimosa é a chancela da Casa Ermelinda Freitas para tintos de vinhas velhas de castelão Goncalo Villaverde
Jaime Quendera, enólogo da Casa Ermelinda Freitas (e da Adega de Pegões, entre vários outros produtores), tece largos elogios à casta castelão: "É produtiva, é resistente, adaptada ao solo e ao clima" e é " consensual". Goncalo Villaverde
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Quinta da Mimosa é a chancela da Casa Ermelinda Freitas para tintos de vinhas velhas de castelão Goncalo Villaverde

Para dar a conhecer o castelão ao vivo, o enólogo leva-nos à Herdade da Fonte, onde decorre a vindima dos últimos cachos. Os bagos são pequenos, de película rija e polpa consistente. Enquanto caminha pela vinha, Jaime vai debicando um bago aqui e outro ali, e comenta que estão no ponto certo. Para demonstrar, abre uma uva. “A grainha está preta, portanto temos fruto maduro. Se estivesse verde, até podia ter açúcares, mas não estaria completamente maturada”, explica.

À excepção do moscatel, o castelão é última uva a ser vindimada, “o que ajuda na logística de adega”, conta Jaime Quendera, num desfile de elogios à casta. “É produtiva, é resistente, adaptada ao solo e ao clima” e “não é uma casta de perfil marcante”, o que, não parecendo, é um elogio: “As castas de maior sucesso são as mais consensuais, e não aquelas que ou se adora ou se odeia.”

Perante tantos elogios, impõe-se a questão: e defeitos, não tem? “Se não a limitarmos, é extremamente produtiva.” O que à primeira vista pode ser entendido como uma virtude pode significar que, sem a devida monda para evitar o excesso de produção, “se torna vulgar, perde a personalidade”.

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Vindima na Herdade da Fonte, da Casa Ermelinda de Freitas (Fernando Pó, Palmela) Goncalo Villaverde

Peixe do dia, música de outro século

De Fernando Pó ao Poceirão não se chega a demorar 10 minutos de carro. Daí se toma a Estrada de Lagameças e, ao cabo de 9 quilómetros, quase sempre em recta, com as linhas de vinha a dominar as vistas, se dá com o Estrela do Mar.

Quem quiser testar o comportamento dos vinhos da Casa Ermelinda Freitas à mesa pode bem fazer deste restaurante sala de provas improvisada, já que parte significante do portefólio do produtor ali está disponível – e a marca está bem presente na sala ampla e de ar moderno, que não raras vezes esgota os seus 150 lugares (a par dos outros 100 na esplanada). Mas o verdadeiro chamariz do restaurante de Paula Couto é o peixe fresco.

Paula é neta de uma varina e filha de um pescador de Setúbal. “A ligação ao mar vem dos dois lados da família”, conta. Há 20 anos, o pai abriu o restaurante O Pescador, ali perto, em Lagameças, que é um sucesso por conta do peixe, comprado por quem o conhece, na Docapesca de Setúbal. Foi lá que Paula começou, até decidir trabalhar por sua conta.

Não há sentimento de concorrência, sublinha, antes de família. “Começámos com a venda ambulante de peixe, do zero”, explica. “Tudo o que sei devo aos meus pais. Tudo o que realizámos foi com esforço, trabalho e entreajuda.” Mesmo separados por duas casas, continua a ser um negócio de família – são seis irmãos, um deles trabalha aqui, os restantes com o pai, onde está também uma filha de Paula. “Ajudamo-nos uns aos outros. Se o meu pai está com falta de pessoal, eu dispenso alguém da minha equipa.”

Restaurante Estrela do Mar, em Lagameças (Palmela) Goncalo Villaverde
Restaurante Estrela do Mar, em Lagameças (Palmela) Goncalo Villaverde
Restaurante Estrela do Mar, em Lagameças (Palmela) Goncalo Villaverde
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Restaurante Estrela do Mar, em Lagameças (Palmela) Goncalo Villaverde

Este Estrela do Mar ainda cheira a novo, abriu em Setembro. Antes disso, esteve sete anos em Areias Gordas, mas Paula sentiu necessidade de crescer e de ter um sítio seu. E a prova do acerto é que, a uma quinta-feira ao almoço, está cheio. “Isto não é nada. Ao sábado, chego a recusar 200 pessoas”, atira, ressalvando que as encaminha sempre para o restaurante do pai.

O Estrela do Mar é um sítio barulhento, vivido, animado, com serviço desempoeirado, a pedir almoçaradas de amigos ou de família. Todas as atenções se centram na montra de peixe fresco, grelhado com mestria, e nos preços, consideravelmente mais baixos do que na proximidade do mar. Mas também há uma ementa de carnes, com o porco preto em destaque, para quem queira pôr à prova o Quinta da Mimosa, mais amigo deste tipo de proteína.

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As estradas Nacional 4 (na imagem) e Nacional 5 correm paralelas na planície de areias de Palmela, quase sempre a direito, ora rodeadas de linhas de vinha, ora por entre manchas de pinhal. Goncalo Villaverde

Sobre o assunto das carnes, mais haverá a dizer, adiante nesta viagem. Mas lá chegaremos. Por enquanto, o caminho prossegue pela Estrada de Lagameças, que guarda outro tesouro que importa conferir – e com o tempo vagaroso de quem tem uma digestão para fazer. Nem de propósito, é mesmo às 15h30 que começam as visitas guiadas ao Museu da Música Mecânica. Para achá-lo, importa ir com atenção às placas, que começam a surgir do lado direito, ao cabo de três quilómetros de estrada.

Luís e Teresa Cangueiro, pai e filha, são os anfitriões deste museu criado pela vontade de partilhar. “Decidi abrir o museu quando tinha 400 peças reunidas. Achei uma pena que ficassem apenas reservadas a uma pessoa”, conta Luís, empresário na publicidade de exteriores e coleccionador ávido destes fabulosos aparelhos desde o momento que descobriu a primeira peça, um fonógrafo His Master’s Voice 103 dos anos 1920, que comprou em Almada, em 1987. “Frequentava leilões e quando apareciam peças destas achava-as curiosas. Fui-me entusiasmando à medida que fui conhecendo.”

Importa explicar melhor o que esperar de um museu de música mecânica. Luís explica: “Máquinas que permitem ouvir música em casa sem ter um instrumentista.” A exposição divide-se em duas grandes áreas: as máquinas que tocam música e aquelas que reproduzem música gravada. Tanto umas como outras são prodigiosas, cada uma na sua especialidade. A linha temporal começa no final do século XVIII, com cilindros dentados de metal que fazem soar palhetas de aço, cada qual com sua nota, construídas com precisão de relojoeiro. Evoluem depois para incorporar percussão e jogos de campainhas, em sincronia com a melodia principal.

Os cilindros dão depois lugar a discos de metal, igualmente dentados, e surgem algumas máquinas com mecanismos de mudança de disco, precursoras das jukeboxes (que também aparecem, na ala seguinte). Entram depois em cena os cordofones mecânicos, os órgãos pneumáticos e os autopianos, incluindo a peça mais recente, um órgão Orchestrelle Aeolian de 1900, capaz de tocar 100 músicas com 20 “vozes” distintas – “Há 30 anos que andava à procura de um”, confessa Luís.

Por fim, a música gravada. Entre fonógrafos e gramofones cabem ainda curiosidades como discos comestíveis de chocolate, os primeiros auscultadores, uma Gharb, produzida em 1930, “a grafonola que é o orgulho dos portuguezes”, de acordo um anúncio da época. Ao todo, são já mais de 600 peças, pelo que o Museu da Música Mecânica é uma preciosidade que merece ser descoberta com tempo, para dar atenção às pequenas maravilhas que guarda. E aí é fundamental apanhar uma das visitas guiadas por Luís ou por Teresa. Fundamental.

A organette Dolcine, de fabrico alemão (1893), toca a partir de livros de papel perfurado, com base num sistema de palhetas movidas a ar. Goncalo Villaverde
A caixa de música Edelweiss, produzida na Suíça no final do século XIX, faz música com base em discos metálicos perfurados. Goncalo Villaverde
Luís Cangueiro, coleccionador e fundador do Museu da Música Mecânica, demonstra o funcionamento de um quadro musical animado de 1880. Goncalo Villaverde
O fonógrafo Concert, produzido pela Edison (EUA), entre 1910 e 1913, reproduz música a partir de cilindros de cera. Goncalo Villaverde
A viagem pela evolução da música mecânica termina numa jukebox Wurlitzer 1080, dos anos 1940. Goncalo Villaverde
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A organette Dolcine, de fabrico alemão (1893), toca a partir de livros de papel perfurado, com base num sistema de palhetas movidas a ar. Goncalo Villaverde

Vinhas realmente velhas

Pela altura em que foi construído o fonógrafo His Master’s Voice 103, o tal com que Luís Cangueiro começou a sua colecção, nascia, nas areias da Herdade de Pegos Claros, em Pegões, uma vinha (de castelão, claro) que ainda hoje produz. Se a bonita idade de 100 anos impressiona numa máquina que se mantém operacional, o que dizer de uma planta que continua a dar frutos?

“Pegos Claros é isto”, diz o enólogo Bernardo Cabral, pegando um punhado de areia do chão da vinha. A areia, explica, tem impacto no trabalho do bago, que se torna mais concentrado do que se estiver num solo carregado de nutrientes. “O castelão é muito resistente”, justifica. Para resumir muito resumidamente: “A um metro, metro e meio de profundidade, há argila” – o que significa retenção de água e nutrientes, e obriga a raízes profundas e consolidadas. Isto permite dispensar a rega, o que leva a “haver menos insectos”, logo a própria vinha exige menos intervenção química. “Na verdade, toda a produção é biológica, embora não a tenhamos certificada”, completa o enólogo.

A ajudar estão vastos hectares de floresta – de pinhal e de montado, actividade principal da herdade – que rodeiam os 30 hectares de vinha e ajudam a criar uma redoma de verde que protege a relíquia centenária. “Pegos Claros também é isto, este isolamento.”

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Herdade de Pegos Claros
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Bernardo Cabral (Herdade de Pegos Claros)
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Vinha centenária, Herdade de Pegos Claros

Além das vinhas, cujos talhões mais novos têm 70 anos, visitar a herdade impõe uma ida à adega – o oposto da costumeira adega hi-tech vocacionada para receber enoturistas. Esta é escura, desprovida de fogo-de-vista e com ar de não ter mudado muito desde a data de 1920 inscrita a vermelho sobre a entrada. “Foi uma adega feita para estas uvas, foi muito bem pensada há 100 anos, ninguém a alterou”, confirma Bernardo, para logo fazer um ligeiro recuo: “Bem, eu tentei. Comprei um desengaçador novo, porque o antigo deixava passar muito engaço.” O resultado foi uma desilusão. “Sem engaço, o vinho ficou desinteressante. O engaço dá-lhe nervo, garra, compensa o excesso de fruto.”

Regressaram ao ponto de partida e não mexeram mais. Apesar de já estar naquela casa há 11 anos, o enólogo não perde o sentido de lugar e afirma, sem reservas: “Detesto que digam que é um vinho [com o estilo] do Bernardo Cabral. O vinho deve ser sempre o terroir, sem imposição da enologia.” O resultado deste trabalho de auscultação são vinhos elegantes, cheios de carácter e com fruta mais discreta do que o habitual nos castelões da região, graças, em parte, à dita incorporação de engaço. Ou, como resume Bernardo Cabral, “um castelão muito clássico”.

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A adega da Herdade de Pegos Claros é o oposto da adega hi-tech. "Foi feita para estas uvas, foi muito bem pensada, ninguém a alterou", explica Bernardo Cabral. Goncalo Villaverde

A virtude de saber esperar

O apelo da mesa é outra característica vincada nos vinhos de Pegos Claros. E a questão é fácil de solucionar, sem necessidade de grandes desvios. Basta virar à direita à saída da herdade, até Santo Isidro de Pegões. Os entusiastas da arquitectura quererão ir com atenção ao traço que domina todo o povoado – construído em meados do século XX, como parte de um projecto público de povoamento e cultivo do território –, em particular o da igreja, de desenho “niemeyeresco”.

Mas falávamos do apelo da mesa: ao alcançar a N4 em Pegões, vira-se à esquerda e em pouco mais de cinco quilómetros se chega a bom porto. De fora, pode parecer um restaurante de beira de estrada como tantos outros, mas a sala de entrada logo desfaz enganos, com os frigoríficos-montra carregados de peças de wagyu e angus: ao Sabores do Campo vem-se pelas carnes maturadas.

Foi a meio da pandemia de covid-19, durante o segundo confinamento, que Sérgio Silva – remando contra quem o queria convencer de que “não ia funcionar”, que ali, “por ser zona de passagem, só funcionavam os pratos do dia” – decidiu transformar a casa, até então cozinha de produção do seu negócio de catering, numa “steakhouse com carnes premium”. E sem pratos do dia. “Tenho propostas do dia, que é diferente”, esclarece, dando para exemplo delícias de forno como pernil, cabrito, javali.

Parte das carnes são maturadas na própria casa, nas câmaras que se vê logo à entrada, mas também nas de um fornecedor. No momento da visita, vai a meio da maturação de uma peça de wagyu que estará no ponto aos 60 dias. “Quanto mais tempo maturar, mais lhe confere sabores diferenciados”, explica Sérgio. Está também a fazer experiências com maturação de carne de porco e tem como projecto prioritário o aumento da capacidade de produção e ter mais disponibilidade de raças portuguesas. Os olhos brilham-lhe ainda mais quando fala naquilo que tem planeado para um futuro menos imediato: “Fazer criação de vacas num terreno aqui perto, para ter toda a cadeia de valor e fazer pedagogia sobre boas carnes, sobre a importância de os animais serem bem tratados.”

A lista de cortes inclui costeletão, tomahawk, T-bone e bife do lombo. A carne, quando chega à mesa, vem suculenta, tenra, envolvente, e tem disponível uma panóplia de acompanhamentos à prova de monotonia, coisas como ovos rotos, picles, arroz de enchidos no forno, cogumelos salteados, pimentos de Padrón, puré de batata-doce. Isto após o “ritual” de início, croquetes feitos com as aparas da carne, que a boa matéria-prima não se desperdiça.

A carta de vinhos tem uma boa representação regional, sobretudo nos tintos, mais amigos do produto-estrela – mas a ementa tem também bacalhau assado e um irrepreensível choco frito, pelo que os brancos e os rosés, embora minoritários, não foram totalmente arredados. O Sabores do Campo pede, sobretudo, encontros de amigos, camaradagem à mesa, e vai-se daqui com a alma cheia e em paz com o mundo.

Sérgio Silva é dono e chef do restaurante Sabores do Campo (EN 4, Palmela), especializado em carnes de qualidade maturadas. Goncalo Villaverde
Lombo de carne maturada, no restaurante Sabores do Campo (EN 4, Palmela) Goncalo Villaverde
Leite-creme queimado, no restaurante Sabores do Campo (EN 4, Palmela) Goncalo Villaverde
Restaurante Sabores do Campo (EN 4, Palmela) Goncalo Villaverde
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Sérgio Silva é dono e chef do restaurante Sabores do Campo (EN 4, Palmela), especializado em carnes de qualidade maturadas. Goncalo Villaverde

Uma casa, duas famílias

Essa paz prolonga-se noite dentro, se à mão houver uma cama confortável rodeada de silêncio. A Delmira Vineyard House fica a coisa de 10 minutos de carro, à entrada de Fernando Pó, e é essa a proposta dos seus quatro quartos: conforto, sossego e, como o nome indica, uma vinha a compor o cenário. Vinha essa que é iluminada pelo primeiro sol da manhã e oferece vistas inspiradoras mal se espreita pela janela.

A Delmira Vineyard House faz parte da oferta de enoturismo da Adega Fernão Pó, casa de vinhos que junta debaixo do mesmo tecto duas das famílias locais mais enraizadas no negócio: os Freitas e os Palhoça. Antes de receber hóspedes, era uma casa de família, a casa onde Isabel Freitas Palhoça cresceu – e viveu, até se casar com Custódio Palhoça (filho de João Palhoça). Foi construída pelo seu pai, Aníbal da Silva Freitas, junto à adega, como era hábito. São suas as iniciais que hoje dão nome ao vinho topo de gama ASF. A homenagem de Isabel à mãe está no nome da casa.

A Delmira Vineyard House faz parte da oferta de enoturismo da Adega Fernão Pó, em Fernando Pó (Palmela) Goncalo Villaverde
Delmira Vineyard House, Adega Fernão Pó (Fernando Pó, Palmela) Goncalo Villaverde
Delmira Vineyard House, Adega Fernão Pó (Fernando Pó, Palmela) Goncalo Villaverde
Delmira Vineyard House, Adega Fernão Pó (Fernando Pó, Palmela) Goncalo Villaverde
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A Delmira Vineyard House faz parte da oferta de enoturismo da Adega Fernão Pó, em Fernando Pó (Palmela) Goncalo Villaverde

Isabel já não tem bem presente a origem da família Freitas, “eram talvez pessoas do Norte que vieram para trabalhar e aqui ficaram”. Mas sabe as ramificações que o apelido por ali ganhou. O tio Marcolino fundou a Marcolino Freitas & Filho, hoje gerida pelo seu primo José Rui Freitas, e o outro tio, José Bento, criou o Casal Freitas – ambas as casas ficam em Fernando Pó, e as vinhas de todas elas tocam-se.

Houve um tempo em que os três irmãos dividiam entre si o investimento em alfaias. Hoje, pela dimensão que todos adquiriram, já justifica terem equipamentos próprios. “Mas o espírito de família mantém-se”, garante Isabel. “Nas campanhas há partilha de ajuda, quem termina primeiro ajuda os outros, se necessário.” E partilham conhecimento. “Se um de nós detecta algum problema na vinha, liga logo aos outros, a avisá-los para estarem atentos às suas.”

Há ainda uma outra prima em Fernando Pó, esta em segundo grau e com fama à escala nacional. Afinal é a mulher do leme de um dos maiores produtores portugueses de vinhos: Leonor Freitas, da Casa Ermelinda Freitas. “O meu marido ajudou-a muito no arranque, com partilha de conhecimento”, conta Isabel, em referência à morte do pai de Leonor e ao momento em que a então técnica superior do SNS decide largar a profissão para se dedicar ao negócio de família – e o resto é a história de sucesso e superação que se tornou sobejamente conhecida. “Hoje a dimensão é outra”, continua Isabel. “Somos nós que precisamos de alguma coisa e eles partilham. Há uns tempos, estávamos a engarrafar rosé e faltavam-nos 20 ou 30 garrafas e a Casa Ermelinda Freitas emprestou-nos.”

Actualmente, a Adega Fernão Pó produz 660 mil litros por ano, a partir de 70 hectares de vinha – dos quais 34 são de castelão. João Freitas Palhoça, filho de Isabel e de Custódio, também elogia a adaptação da casta aos solos da zona. Ele que cresceu aqui, a seguir o avô para todo o lado. “Sempre gostou da terra, dos bichos, de se andar a emborralhar na terra”, conta a mãe.

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João Palhoça, enólogo da Adega Fernão Pó, cresceu no campo, a acompanhar o avô. Ouvi-lo falar é toda uma lição sobre a região, a terra, a casa, a ciência do vinho. Goncalo Villaverde

“Tenho 43 anos, mas sou um velho”, diz João logo nas apresentações. “Sempre gostei de ouvir as histórias que os velhos contam”, esclarece, com um aviso: “Olhe que eu falo muito.” Fala, de facto. Com gosto e desenvoltura. É fácil a conversa mudar de rumo, tantos são os aspectos do vinho que puxa, explica, exemplifica. Para ouvidos interessados, torna-se uma aula sobre tudo o que tenha que ver com a região, a terra, a casa, a ciência do vinho. E tudo isto sem cair na efabulação, coisa que afasta por completo. “Existe um certo romantismo no vinho”, atira. “É propenso a contar-se histórias – e ao exagero nessas histórias.” Se repararmos nos contra-rótulos, a descrição do conteúdo é parca e desprovida de narrativa. O que faz jus ao lema da casa, “O vinho como ele é”.

Outra conversa que dá pano para mangas é a origem do castelão. Corrobora que terá sido José Maria da Fonseca a trazê-la na década de 1840, para plantar a vinha da Cova da Periquita. “Supõe-se que a trouxe da Beira Interior, mas de onde ao certo não se sabe”, conta. E como se tornou casta dominante na região? “O que me parece mais óbvio é que alguém terá notado que a vinha da Periquita produzia muito bem e usou varas dessas videiras para plantar as suas vinhas.” A palavra foi passando entre produtores. “Provavelmente, a casta foi-se expandindo organicamente pelos arredores e acabou por se alastrar à região.” Vai-se a ver e não são só as pessoas ligadas ao vinho que partilham o parentesco. Eventualmente, as próprias vinhas antigas de castelão acabam por ser “primas” umas das outras. Fica tudo em família, portanto.

Com a casta castelão, a Adega Fernão Pó faz o tinto ASF (como casta maioritária no blend) e o rosé monocasta Fernão Pó. Goncalo Villaverde
Com a casta castelão, a Adega Fernão Pó faz o tinto ASF (como casta maioritária no blend) e o rosé monocasta Fernão Pó. Goncalo Villaverde
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Com a casta castelão, a Adega Fernão Pó faz o tinto ASF (como casta maioritária no blend) e o rosé monocasta Fernão Pó. Goncalo Villaverde

Este artigo foi publicado no n.º 6 da revista Solo.

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