Juiz que assinou acórdão com erros nega ter usado IA: “É completamente descabido”

Adjudicações suspeitas na Misericórdia de Lisboa suscitam decisão do Tribunal da Relação que cita leis e jurisprudência inexistentes. Arguidos mandados julgar por crimes de que não estão acusados.

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Tribunal da Relação de Lisboa Nuno Ferreira Santos
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O juiz do Tribunal da Relação de Lisboa que, com outros dois colegas, assinou um acórdão com erros crassos a vários níveis, nega que o sucedido se deva à utilização de inteligência artificial.

O desembargador Alfredo Costa transmitiu à presidente do tribunal que essa hipótese, avançada por advogados de defesa envolvidos no processo em causa para explicar o que se poderá ter passado, “é completamente descabida”.

Sem explicar, por enquanto, a origem dos enganos detectados pelas defesas dos arguidos, o magistrado acrescenta que o processo “está a seguir os seus trâmites normais”, não tendo os juízes respondido ainda às reclamações apresentadas “por impossibilidade de natureza pessoal” de um deles.

O acórdão remete para julgamento de antigos dirigentes da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa responsáveis por adjudicações suspeitas de bens e serviços. O caso remonta há uma década e envolve fornecedores com cargos no PSD e também no PS, incluindo o presidente da concelhia socialista, Davide Amado, igualmente remetido para julgamento. A Santa Casa reclama aos antigos administradores mais de 1,7 milhões de euros em tribunal. Depois de terem sido ilibados por um juiz de instrução, os arguidos foram agora mandados julgar.

O problema é que, na decisão em que remetem os arguidos para julgamento, os três juízes citam jurisprudência que não existe ou que, nos casos em que existe, não se aplica de todo ao processo em causa. Além disso, mandam julgar alguns dos antigos dirigentes por um delito de que não estavam nem podiam estar acusados, por só ser assacável aos titulares de cargos políticos, o crime de peculato por erro de outrem.

Os advogados da antiga administradora da Santa Casa Helena Lopes da Costa, que é defendida pelo penalista Rui Patrício e por uma colega deste, garantem nunca se terem deparado com nada semelhante ao longo das suas carreiras. Falam de um “gigantesco e flagrante lapso, porventura de natureza informática e similar” que ultrapassa a fronteira do imaginável, não descartando também a possibilidade de ter ocorrido uma intrusão informática. E interrogam-se por que motivo um tribunal superior produziu um acórdão baseado “em ‘lei’ que não existe” e citar “’jurisprudência’ que não se encontra”. O acórdão “tem parecenças várias, ao olho de um observador médio, com um texto gerado por inteligência artificial ou alguma outra ferramenta (ou intromissão, abuso, viciação, o que seja) de natureza informática ou digital”, escrevem. A única explicação que a dupla de advogados vê para o fenómeno é “uma eventual geração automática, computorizada e artificial” do conteúdo do acórdão do Tribunal da Relação.

Depois de o insólito caso ter sido noticiado neste domingo pelo Correio da Manhã, o Conselho Superior da Magistratura reagiu dizendo que nunca deu instruções aos magistrados submetidos aos poderes disciplinares deste órgão sobre o recurso a ferramentas de inteligência artificial.
“Os juízes gozam de independência e autonomia no exercício das suas funções jurisdicionais, incluindo na selecção das fontes que utilizam para se documentar e fundamentar as suas decisões”, disse o mesmo conselho, acrescentando que essas decisões são sindicáveis por lei. Até ontem este órgão não tinha recebido qualquer queixa sobre o acórdão.

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