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“O fantasma do golpe militar continua rondando o Brasil”, afirma Fernanda Hamann
Com lançamento em Lisboa na sexta-feira, 29/11, o livro Estilhaços de Junho, da escritora, faz dos acontecimentos da política brasileira a base para mostrar a democracia em crise no país.
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Para a escritora Fernanda Hamann, 46 anos, o Brasil vive sob a ameaça de ter um regime autoritário. Ela acredita que a crise da democracia atinge grande parte dos países e a forma que encontrou para reagir a esse movimento foi escrever.
Resultado disso é o livro Estilhaços de Junho, com 11 contos situados em várias partes do Brasil, pequenas histórias que acompanham a realidade do país de junho de 2013 até 8 de janeiro de 2023, dia em que houve a tentativa fracassada de golpe de Estado após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente da República. Agora, descobriu-se uma trama envolvendo militares para matar Lula, o vice dele, Geraldo Alckmin, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Morando em Lisboa desde 2002, para onde veio com uma bolsa da Criar Lusofonia, do Centro Nacional de Cultura, com o objetivo de escrever um romance, que ela garante estar terminando, Fernanda publica, agora, seu terceiro livro de ficção. Foi com a obra Cativos, de 2015, que ela se tornou conhecida como escritora.
Formada em jornalismo e psicologia, um de seus livros trata de uma figura maior da literatura brasileira: Nelson Rodrigues e a Psicanálise, em que olha para as contradições em que o escritor e jornalista vivia. Com pós-doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada, foi professora de escrita criativa no Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESPE).
Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao PÚBLICO Brasil.
Seu livro se parece com uma rapsódia, em que cada conto toca um instrumento diferente. Como foi construir esse Brasil?
Busquei mesmo uma pluralidade, uma diversificação de vozes. Tanto para poder representar o Brasil, um país continental, muito diverso, quanto para representar a democracia. Para mim, havia interesse de pensar a democracia, a dificuldade de estabelecer um regime em que diferentes vozes possam dialogar, e a complexidade que vivemos hoje num momento de crise democrática em todo o mundo. Busquei uma possibilidade de entrarmos em contato com diferentes vozes e ver o problema que é tentar articulá-las de uma forma que não seja ditatorial. Porque a resposta mais fácil é, diante desse caos, um pai forte que coloque ordem nessa bagunça. É o que alguns países estão escolhendo hoje, como diria Freud. Em um momento de crise, de medo e de instabilidade, escolhem um pai forte que resolva, como Hitler, como Mussolini, e aí por diante.
O livro fala de um momento que mudou o mundo. Que mudança é essa?
É o que chamamos de crise da democracia. Foi um processo. Não é uma coisa que brotou da noite para o dia. O livro faz um recorte de 10 anos, desde 2013, com as Jornadas de Junho no Brasil, até 2023. Foram revoltas populares em todo o país. É um processo que começa com o descrédito da democracia, uma crise do capitalismo, e segue com o impeachment de Dilma (Rousseff, então presidente do Brasil), com a eleição de um líder ditatorial, até chegar a 2023, com uma tentativa de golpe de Estado. Foi um processo que o Brasil atravessou, mas que vemos em outros países, aparecendo de diferentes maneiras, com a eleição de Donald Trump (nos Estados Unidos), de Javier Milei (na Argentina), de Narendra Modi (na Índia). São regimes em que é difícil ver onde acaba a democracia e onde começa a ditadura. Nem todos são explicitamente ditatoriais, mas são regimes autoritários, como se quisessem colocar ordem numa bagunça. Existe a ideia de que há uma crise, uma instabilidade, e as instituições democráticas já não são confiáveis. Questionam a confiabilidade das eleições e o debate é esvaziado. No Brasil, o debate vira cadeirada. As instituições democráticas estão fragilizadas e, diante disso, há uma tentativa de golpe de Estado, de ditadura de extrema-direita, que é um perigo que está se espalhando pelo mundo. O mundo precisa se articular para poder se cuidar como humanidade, para cuidarmos das condições de sobrevivência da humanidade na Terra.
Normalmente, a ficção reconstrói a realidade. Você atravessa a realidade com a sua ficção. Por que essa opção?
O livro traz, praticamente, o registro de discursos históricos. São personagens que existem. A madame, que está insatisfeita por perder seus privilégios, o policial, o pastor da igreja neopentecostal que está contra a força que o movimento LGBT está ganhando no Brasil. Quis registrar esses discursos como uma espécie de memória nacional. Quando fazemos literatura, brincamos. Freud dizia que o escritor é como uma criança que brinca de criar o mundo de faz de conta e que leva muito a sério esse mundo que ele cria. Então, eu tinha essa pretensão de fazer uma espécie de autoficção nacional. É uma narrativa ancorada no que de fato aconteceu, mas amarrada de uma forma literária que pode representar, de alguma forma, a pluralidade dos discursos que estavam acontecendo nesses 10 anos.
Por que a opção de um livro político?
Porque estou apavorada. Tenho dois filhos e acho que quem ainda não entendeu que a humanidade está ameaçada é porque está mal informado. A crise climática que achávamos que só viria daqui a 20 ou 30 anos, já é real. Esse apocalipse antropocênico está acontecendo. Acho urgente que as pessoas criem a consciência de que os nacionalismos ditatoriais são um problema. Eu queria problematizar essa ideia, pois me preocupo muito com isso. O fantasma do golpe militar continua rondando o Brasil. Quanto mais ditatoriais os Estados, menos eles terão capacidade de dialogar globalmente, de pensar a humanidade como um todo, fora do seu narcisismo nacionalista.
E por que se mudou para Portugal?
Primeiro, porque era o governo de Jair Bolsonaro e eu estava infeliz no Brasil. E ganhei uma bolsa do Centro Nacional de Cultura para escrever um romance em Portugal. Essa bolsa é chamada de Criar Lusofonia, que estimula escritores tanto portugueses quanto de outros países lusófonos. Eu vim em 2022 para escrever um romance sobre xenofobia e racismo. E adorei Portugal, me apaixonei pelo país e estou vivendo aqui nesses dois anos uma espécie também de aventura de vida.
O livro tem um percurso pelo Brasil. Vai por São Paulo, Brasília, Manaus, Salvador. Por que esse caminho?
Isso foi uma preocupação intencional. Primeiro, para expressar a diversidade que, para mim, era importante. A diversidade é uma riqueza. A relação com o outro traz coisas que você não tem, que você pode aprender, abrir sua perspectiva, a sua visão de mundo. E isso é muito rico no Brasil. Não é por acaso que a cultura brasileira é uma das culturas mais ricas do mundo, em termos de produção artística, cultural, música, dança. Não quis ficar fechada no eixo Rio-São Paulo. Quis abarcar uma diversidade cultural e geográfica do Brasil.
Sobre a pandemia da Covid-19, você escolheu mostrar um índio. Por quê?
Porque, para mim, foi um crime terrível deixar essas pessoas morrerem no Amazonas de uma forma tão negligente. Primeiro, a crise de abastecimento de oxigênio que aconteceu no Amazonas. O Ministério da Saúde estava advertido de que faltariam cilindros de oxigênio e não tomou nenhuma medida para evitar isso, e as pessoas morreram sufocadas. E, para mim, mais grave ainda é que são descendentes de povos originários do Brasil, povos que sabiam cuidar das condições de sobrevivência humana na Terra. São povos que sabiam cuidar da floresta, dos bichos, das coisas, de modo a perpetuar a existência humana minimamente harmônica com o planeta. A gente desaprendeu. Não sabemos fazer isso. Somos uma sociedade capitalista, consumista, individualista, narcisista. Esses povos originais têm esse saber ancestral, que é muito importante para o mundo.
Na hora de falar sobre tortura, ecoa as palavras de dentro da cabeça de uma mulher que foi torturada. Por que essa opção?
Na votação do impeachment de Dilma, na Câmara dos Deputados, Bolsonaro pegou o microfone e disse que ele era a favor do impeachment em homenagem a Carlos Alberto Brilhante Ustra, um coronel que torturou uma quantidade incalculável de pessoas, como dizem os relatos na Comissão da Verdade. Ele torturou crianças na frente dos pais delas. Houve pessoas que ficaram traumatizadas para o resto da vida, que cometeram suicídio porque não suportavam viver depois do que sofreram. Esse homem é um monstro, um perverso da pior espécie. Como é que, na Câmara, um deputado pega o microfone, dedica o seu voto a um monstro e ninguém faz nada? Esse dia me chocou muito e, quando vi essa cena, fiquei perturbada. Eu escrevi sob o efeito dessa perturbação afetiva. Imagina a pessoa que foi torturada, que sentiu isso na carne. Diante do que aconteceu, vi que o negócio estava ficando complicado no Brasil.
Num dos contos, uma personagem da classe alta vive completamente alheia à realidade...
Ela não quer abrir mão dos privilégios dela. Eu sinto que a classe dominante brasileira não quer abrir mão de um milímetro dos seus privilégios em nome de uma sociedade mais igualitária. Mas isso é uma armadilha, porque, em São Paulo, as pessoas andam de carros blindados e blindam suas casas e têm câmeras de segurança. É uma prisão auto-infligida, por causa da desigualdade social. Se existisse um projeto de país em que essa desigualdade fosse diminuída, não haveria tanta violência no Brasil.
Como viveu os acontecimentos de 2013, quando começa seu livro?
Curiosamente, em 2013, eu tinha recém-parido, tinha acabado de ter meu primeiro filho. Ele estava com 4 meses e eu, amamentando, muito envolvida com a maternidade. Levei um susto quando eu vi aqueles protestos na televisão. Fiquei dividida. Por um lado, queria estar com meu filho, viver esse laço que não volta nunca mais, que é amamentar, cuidar, mas, por outro lado, queria ir para a rua. Queria entender o que estava acontecendo, porque ninguém entendeu o que estava acontecendo. A gente só começa a entender um pouquinho mais agora, 10 anos depois. Eu cheguei a ir umas duas vezes.
E o próximo livro, o que vai ser?
É a história de uma brasileira branca e racista que chega em Portugal e sofre xenofobia. Então, ela precisa passar da condição de agressora, de racista, de quem exerce o preconceito, para a condição de quem sofre. Existe um caráter estrutural no racismo. Hoje você é o algoz, amanhã, você pode ser a vítima.