Quando o ensino superior se torna sinónimo de abuso

Protegidas pela sua autonomia, as universidades têm contado com uma fraca supervisão por parte da DGES e do Ministério. Urge reverter esta situação com a adoção de medidas responsáveis e preventivas.

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Alunas mostram cartazes de protesto junto à sala onde é apresentado o relatório da Comissão Independente sobre situações de assédio moral e sexual alegadamente ocorridas no CES, em Coimbra PAULO NOVAIS
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No dia 15 de Novembro, foi suspenso o julgamento de Boaventura de Sousa Santos contra quatro mulheres que denunciaram o clima de abuso no Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra. Tendo em conta que este caso é um de muitos que compõem o quadro do abuso sistemático nas universidades portuguesas, importa perceber porque continuam as instituições a falhar na protecção dos seus estudantes e investigadores. Na era dos movimentos globais como o MeToo, que têm impulsionado a denúncia do abuso em várias áreas, o ensino superior português continua em atraso na construção de mecanismos responsáveis pelo acompanhamento dessas denúncias.

A urgência de entender como estes problemas são tratados (ou não) pelas instituições é visível quando Portugal se destaca pelas altas taxas de assédio em espaços universitários como denunciado num estudo recente coordenado pela Universidade de Évora. Não se tratam de questões pontuais aquelas sobre o caso do docente do Porto, despedido por acusações de assédio sexual e rapidamente reintegrado por ordem judicial ou de Boaventura que durante anos perpetuou um clima de violência sexual, moral e expropriação intelectual dentro do CES. Estes são apenas casos mediáticos, a par destes juntam-se todos os testemunhos mais silenciosos recolhidos pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) ou pela Associação Académica de Coimbra (AAC).

Não obstante, as reitorias e direcções das instituições do ensino superior continuam a agir com complacência, acumulando processos arquivados e perpetuando um ciclo de inércia. Muitas vezes protegidas pela sua autonomia, as universidades têm contado com uma fraca supervisão por parte da Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Caso contrário, as entidades públicas de acompanhamento de assédio e violência no espaço universitário não iam surgindo tão timidamente. Desde 2022, foram criadas comissões e portais de denúncia, mas estas medidas são insuficientes sem a criação e revisão de códigos de conduta que prezem pela eficácia e pela prevenção. Além disso, é urgente implementar mecanismos que impeçam a reintegração de docentes ou funcionários que usem a impunidade institucional a seu favor.

O que invariavelmente surge em resposta à inércia do sistema são os colectivos feministas e de vítimas organizados por estudantes e/ou investigadores, como é o caso do Academia sem Assédio em Coimbra, formado pelas denunciantes do CES, a Comissão para a Igualdade de Género da AAC e o Núcleo Feminista da FDUL. Estes colectivos lutam para chegar onde as instituições de ensino superior não conseguem, estabelecendo um conjunto de exigências para tornar o espaço da universidade um espaço inclusivo e livre de abusos. É crucial garantir o apoio a estes colectivos, percebendo o que têm para dizer e as suas propostas, até porque os testemunhos recolhidos são fundamentais para a implementação de políticas conscientes.

Cada denúncia feita a estes colectivos representa não apenas uma falência das instituições, mas também a retraumatização de estudantes cujas vidas foram afectadas. É preciso que os espaços universitários ouçam as vítimas e que actuem com a compaixão e a urgência que a situação exige. Desde logo, um canal de denúncias nacional com uma entidade independente constituída pela DGES é a medida mais defendida por todas as associações de estudantes nacionais. Este canal, gerido por uma entidade independente, deverá assegurar anonimato às vítimas, garantir a celeridade na análise das denúncias e fornecer apoio psicológico e jurídico. Mais do que uma simples plataforma, seria um símbolo de compromisso com a segurança e o bem-estar dos estudantes.

A Comissão de Prevenção do Assédio no Ensino Superior criada pelo actual Governo aquando da dissolução da actividade da anterior comissão em Maio, serviria à partida como entidade responsável por todas estas medidas. Porém a recém-criada comissão que está ainda a recolher dados não pode impedir a adopção de medidas tão urgentes como estas. Os estudantes precisam de garantias imediatas de que as universidades se esforçarão para ser espaços seguros, onde as denúncias são tratadas com seriedade e respeito devido. O silêncio e a inércia já não podem ser tolerados, dado que as instituições de ensino superior precisam de permanecer espaços de conhecimento e progresso, não podendo ignorar a urgência de transformar as suas culturas internas.

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