Diz António Maçanita que se inspirou nos registos históricos que existem sobre o vinho produzido outrora nas margens "do rio mais importante de Évora, e que a história local conhece desde a Idade Média por Enxarrama, actual rio Xarrama", para criar o Enxarrama Tinto 2014. Foi apresentado esta segunda-feira, a Fitapreta chama-lhe "o arqui-rival do Pêra-Manca" e custa 480 euros.
A primeira referência escrita ao vinho do Enxarrama "é de 1321", portanto, tem "muito, muito, muito tempo", contextualizou o produtor e enólogo. O convite para o lançamento do Enxarrama, agora a referência maior da Fitapreta, no recém-inaugurado Paço do Morgado de Oliveira — a Fitapreta celebrou recentemente 20 anos, mas só tem 'casa' desde 2016, e passou os últimos anos a reconstruir aquele edifício originalmente do século XIV —, colocava a fasquia lá em cima, anunciando: “o arqui-rival do Pêra-Manca está de volta".
"Pensar que sobre Pêra-Manca a primeira citação é de 1345. São contemporâneos. São vários nomes, mas Enxarrama, em termos de citação, associado a vinhas, é um bocadinho anterior", explicou o produtor com veia de historiador e geneticista, mas que, para o caso em mãos, se reuniu de ajuda profissional, em concreto um grupo de seis historiadores, liderado por Francisco Bilou, que mergulhou não só na história do Paço — o maior paço rural gótico de quantos se conservaram no país —, como na do território em que aquele se insere, 'tropeçando' assim na fama do Enxarrama, e que prepara um livro digital sobre essa investigação.
O Pêra-Manca da Adega Cartuxa é nosso contemporâneo, atenção. Mas António Maçanita fala do que seriam, à época, dois "grand crus alentejanos". "Enxarrama e Pâra-Manca, o que é que eles têm em comum? Ambos são ribeiros, são rios, por isso Enxarrama é o rio Xarrama e Pêra-Manca é o ribeiro de Pêra-Manca. Eram zonas vinhateiras." E o Xarrama é um efluente do ribeiro do Louredo, que desde a Idade Média deu o nome a todo um "território ribeirinho de boas terras de aluvião", que garantia "alguma frescura durante o inclemente Verão alentejano". Fosse pela fama do vinho do Enxarrama, fosse pelo interesse da caça, fosse simplesmente por ser perto de Évora, o Paço foi desde cedo visitado pela nata da nossa aristocracia.
Segundo Maçanita, conhecido também por ser um bom contador de histórias, no século XV, precisamente "no Dia de Reis de 1474", os historiadores encontraram notícia da visita do então "jovem príncipe D. Afonso, futuro Rei D. João II" e de uma afronta a sua esposa, D. Leonor: o morgado do Paço, João Mendes de Oliveira recusou-se a carregar as andas em que seguia a princesa. Mas, rezam os documentos, isso não impediu que o nobre ali voltasse. E em 1485, D. João II viria mesmo a dar ordens "para que não se molestassem os mercadores bretões e franceses" quando estes fossem a "Évora comprar vinho". "Por isso, sabe-se que há interesse de povos do Norte para vir buscar vinho ao Alentejo e que os locais os maltratam, porque não querem ficar sem vinho."
Os "grand crus alentejanos"
Avançando na História, diz o enólogo que em 1816 o francês André Julien, "o precursor dos Grand Cru Classés", o sistema que ainda hoje hierarquiza os vinhos de Bordéus de acordo com a sua qualidade e os terroirs em que nascem, escreve sobre o Alentejo e afirma "que o vinho [produzido na região] é muito reputado, conhece-se por ser muito bom, mas que há muito pouco que mal chega para os habitantes".
Mais tarde, ainda no século XIX, há um estudo sobre o potencial vitivinícola do nosso país, continua Maçanita, "que divide Portugal em três partes" e no qual "o Visconde de Vila Maior fica com o Norte do país, Augusto de Aguiar fica com o Centro e Ferreira Lapa fica com o Sul". É esse Ferreira Lapa que escreve: "de todos os vinhos de Évora, o mais procurado e mais bem pago na capital é o Enxarrama, há outros mais ou menos nomeados pela sua qualidade, os do Redondo e os de Pêra-Manca, que parecem ter sido cantados por Camões". "Isto é o statement dele à época." Leia-se: entre 1867 e 1869, período que passou no Alentejo a "visitar vários sítios".
A Fitapreta recupera inclusivamente a sua nota de prova, datada de 1867, para apresentar, nos dias de hoje, o seu tinto especial de 2014. São as palavras de Ferreira Lapa que surgem na ficha técnica da nova referência do produtor:
O vinho que provámos, fruto de uvas maioritariamente provenientes de uma vinha com "quase 40 anos" e "que encosta" às vinhas do Paço e que "fazia parte da propriedade antiga" — "chama-se Oliveirinha" — tem álcool elevado, 15%, como teria, a julgar pelas notas de prova de Ferreira Lapa, o histórico vinho do Enxarrama. Mas é alcoólico sem ser quente. É um tinto em que o Alicante Bouschet domina — uma aparente contradição, já que a casta só chegaria ao Alentejo no final do século XIX, mas diz António que, "até haver uma vinha velha de Enxarrama, o lote será o das melhores uvas do ano" —, mas também tem Aragonez, Trincadeira, Castelão e Moreto. Sentimos, no nariz, a sua fruta fresca e um lado mentolado. Apesar de ser um tinto com dez anos, quase oito de garrafa (o engarramento foi em Junho de 2017), é sobretudo na boca que encontramos pistas para chegar à sua idade.
Tem corpo, potência e textura. E é um vinho para a mesa, tipicamente para harmonizar com uma carne de forno, seguindo uma qualquer receita que o igualasse em complexidade. Mas que, durante o almoço desta segunda-feira, no espaço gastronómico do Paço — em soft opening até ao início do próximo ano, tem à frente o jovem mas já experiente chef Afonso Dantas —, foi serviço com pão e azeite. Assim mesmo, e no final da refeição.
Na mesma ocasião, foi lançado o Morgado de Oliveira "Ribeiro de Enxarrama" Branco Non Vintage (150 euros), um branco de solera, em que entraram vinhos de 2019, 2020 e 2021, 100% Arinto, com cheiro a fruta de caroço e a vegetação ribeirinha e um grande equilíbrio entre acidez e tudo o resto. Um branco que nos faz salivar (ver ficha).
"Nunca houve só uma fórmula"
Uma proposta fora da caixa este Enxarrama Tinto de um "ano bipolar" mas "grande" no Alentejo. António Maçanita, conhecido por fazer vinhos que, no caso do Alentejo, não parecem ser da região (do Alentejo de hoje, entenda-se) e que faz na Serra d'Ossa esse ícone da Fitapreta, o Paulistas, um vinho que nos leva numa direcção completamente distinta, justifica: "cada vez mais penso que não há um Alentejo, há vários Alentejos. Nunca houve uma só fórmula".
E é isso que dá querer "escavar" sempre mais. Foi isso que levou António e Sandra a quererem descobrir o que as fachadas do Paço do século XIX, da época em que o edifício sofreu uma grande obra de restauro e alteração, escondiam. O que escondiam as suas paredes interiores e o seu chão. E foi assim que se descobriram frescos do final do século XV e a lagareta que recebia as uvas das "courelas de vinhas", vinhas "aforadas" que "eram um tipo de arrendamento para a vida".
"Descascar uma parede não quer dizer que se encontre alguma coisa, mas 720 anos serão sempre uma fracção pequenina da História, e há a vontade de, no nosso tempo, deixar uma contribuição. É idêntico para a vida, idêntico para o que gostava de contribuir no sector do vinho, de chegar a um sítio e tentar aprender, perceber as castas, perceber os locais, falar com as pessoas, não vir cheio de certezas. As versões originais não existem, ou antes, existem tantas versões originais, que devemos acarinhar umas ou outras e tomar a nossa decisão de como é que vemos o futuro."
Nome Enxarrama Tinto 2024
Produtor Fitapreta;
Castas Alicante Bouschet (85%), Aragonez, Trincadeira, Castelão e Moreto
Região Alentejo
Grau alcoólico 15%
Preço (euros) 480
Pontuação 96
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova Proveniente de uma vinha com cerca de 40 anos, contígua ao actual Paço do Morgado de Oliveira, este Enxarrama Tinto 2024 apresenta-se como uma reinterpretação dos vinhos da zona vitivinícola do Enxarrama, com pergaminhos no Alentejo desde a Idade Média. É alcoólico sem ser quente. Sentimos-lhe a fruta fresca e um lado mentolado. Na boca, tem um tanino rugoso e que se mastiga. Tem corpo, potência e textura. É saboroso, até ao final. E é um vinho para a mesa, tipicamente para harmonizar com uma carne de forno mais elaborada. Foi engarrafado em 2017, está num momento óptimo de consumo, mas antevemos-lhe capacidade para evoluir ainda mais.
Nome Morgado de Oliveira “Ribeiro do Enxarrama” Branco Non Vintage
Produtor Fitapreta;
Castas Arinto, Folgasão e Perrum
Região Alentejo
Grau alcoólico 13%
Preço (euros) 150 (PVP recomendado)
Pontuação 95
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova Lançado em simultâneo com o Enxarrama 2014, este branco vem do mesmo terroir (neste caso, de vinhas plantadas em 2017) mas é rotulado de outra forma porque, explica o produtor, na época que inspirou aquele tinto não havia grande tradição de produzir vinhos brancos. É um non vintage, porque é feito de mostos de 2019, 2020 e 2021, embora a última colheita seja dominante no lote (85%). António Maçanita, um dos enólogos da Fitapreta, gosta de “misturar colheitas”, o que não quer dizer que será sempre assim com esta referência. Um vinho que se destaca pela sua complexidade e pelo seu equilíbrio entre acidez e tudo o resto: aromas a fruta de caroço e a beira-rio, à frescura ribeirinha, mas também a flor e a pimenta branca, e uma boca elegante, fumada e muito fresca, e uma secura que nos faz salivar por mais. Um grande vinho branco.