Vitorino pede “ousadia” ao Governo na imigração. Visto com contrato de trabalho “não é suficiente”

Presidente do Conselho Nacional para as Migrações alerta que só depois de se regularizarem as pendências na AIMA se poderá “avaliar a real dimensão da imigração ilegal em Portugal”.

O presidente do novo Conselho Nacional para as Migrações e Asilo, António Vitorino, defende que não se pode "rotular como racistas e xenófobos todos os que se sentem desconfortáveis perante os fluxos migratórios"​ e defende um esforço maior do Governo nas políticas de integração e na articulação com os países de origem de imigrantes.

Vitorino, que já foi comissário europeu e ministro da Defesa, fala ainda, em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, sobre a guerra na Ucrânia e diz que a autorização de Joe Biden para a Ucrânia usar mísseis de longo alcance foi "tardia".

Ficou surpreendido pelo convite de um governo da AD para presidir ao Conselho Nacional para as Migrações e Asilo?
Não sei se surpresa pode ser o estado de espírito. Num momento em que as migrações ocupam um espaço bastante pronunciado no debate público, pareceu-me que, tendo a experiência que tenho, seria de um enorme egoísmo pôr considerações de ordem política ou partidária à frente da possibilidade de dar um contributo modesto num conselho consultivo. Nesta matéria [das migrações], é preciso ter uma grande humildade porque não há soluções mágicas.

Quais é que foram os seus conselhos? Onde é que é preciso actuar rapidamente?
A prioridade das prioridades é proceder à regularização daqueles 400 mil imigrantes que fizeram a sua manifestação de interesse e que ainda não têm a sua situação reconhecida. Tenho muita curiosidade em ver os números finais. Há alguns indicadores que dizem que até poderiam ser mais, mas há outros que dizem que muitas pessoas que pediram este processo de regularização já cá não estão. Foram para outros destinos.

Está também pendente o processo legislativo que permitirá resolver um problema criado pelo diploma da extinção das manifestações de interesse para aquelas pessoas que já tinham contrato de trabalho há um ano e que já descontavam há um ano, mas não tinham tomado a iniciativa de regularização.

Na campanha eleitoral para as europeias, ao lado da candidata do PS, Marta Temido, admitiu que a transição do SEF para a AIMA tinha corrido mal. A situação, entretanto, melhorou ou está corrigida?
Está em vias de correcção. A minha expectativa é de que, tal como foi dito pelo Governo, dentro de um ano, a situação esteja totalmente normalizada.

A regulamentação que falta devia ser feita no mais breve trecho possível?
A existência de canais regulares de imigração é a forma mais eficaz de lutar contra a imigração clandestina e tráfico de seres humanos. É muito importante que os países tenham uma política de imigração proporcionada às suas necessidades do mercado de trabalho. As pessoas vêm para cá para trabalhar, não vêm para viver à custa dos portugueses, ao contrário do que certa demagogia diz. Mas também proporcionada às capacidades de integração na sociedade de acolhimento. Nesse sentido, há várias modalidades possíveis de organizar a imigração regular. O Governo manifestou uma preferência, que é as pessoas pedirem um visto de trabalho. Isso é uma das modalidades possíveis. Creio que não é suficiente. Creio que é necessário ser mais ousado para um país com as características do nosso.

Mais ousado como?
Mais ousado no sentido de ser proactivo na procura de imigrantes que são necessários para determinados perfis na sociedade portuguesa: 40% da mão-de-obra na agricultura e pesca são de imigrantes, 35% na hotelaria e turismo, que é responsável por 15% do PIB; 28% na construção civil. É relativamente evidente que este contingente de imigrantes é necessário para garantir a economia portuguesa.

Há países, por exemplo, como a Alemanha, que fazem investimentos nos sistemas de formação profissional dos países de origem. Faz isso, por exemplo, muito bem no Egipto. Há um conjunto de empresas holandesas que fazem uma prospecção de mercado em certo tipo de nichos no Quénia.

O que está a falar é de imigração qualificada.
Não só. Gostamos de dizer que queremos os Einsteins deste mundo, não é? Perfeito. Eu também gosto muito de que venham para cá os génios que estejam disponíveis. O mundo cada vez mais será de concorrência pelas inteligências e pelas qualificações.

A intenção do primeiro-ministro anunciada no congresso do PSD foi a de que é preciso trazer imigração qualificada para o país.
Totalmente de acordo. Não há nenhum líder político que não diga isso. Porquê? Porque acham que é mais fácil "vender" à opinião pública a vinda de imigrantes altamente qualificados.

Mas se for aos lares de idosos, se for ao serviço doméstico, se for aos cuidados para crianças, verificará que não é preciso ter nenhum PhD, não é preciso ter nenhum doutoramento para preencher esses postos de trabalho.

Esse é o grande equívoco da narrativa hoje: de que só precisamos de trabalhadores qualificados. Não é verdade. Precisamos de trabalhadores de todas as categorias de qualificações. Eu não conheço nenhuma lista de espera de portugueses para irem à apanha do fruto vermelho em Odemira.

Este caminho exige alguns pressupostos. Por exemplo, que o sistema seja ágil na resposta aos pedidos. E, em segundo lugar, exige que estejamos preparados para identificar as suas qualificações.

Em Portugal, há algumas associações empresariais que já se estão a mobilizar nesse sentido [de ir recrutar trabalhadores lá fora]. E no caso português isso até é particularmente fácil. Porque temos uma imigração onde 70% são oriundos dos países de língua oficial portuguesa. Temos relações especiais com esses países. E, portanto, a estratégia, por exemplo, de investir no sistema de formação profissional nesses países para poder criar um caldo de cultura favorável a uma imigração qualificada aos vários níveis é uma via muito importante para prosseguir.

Nesse discurso todo, onde é que cabe aquela promessa do Governo de lançar centros de acolhimento para os imigrantes, quer para Lisboa quer para o Porto?
A minha interpretação dessa medida que foi anunciada é de que isso corresponde a uma exigência do Pacto Europeu de Asilo e Imigração, que só estará em vigor em 2026.

Tem defendido que a vigilância da imigração ilegal é menos uma questão de postos de fronteira e mais de autoridade para as condições de trabalho. A esse nível, a ACT tem estado pouco proactiva ou não tem meios para actuar?
Os números é que acham. Cerca de mais de 60% dos imigrantes que estão em situação irregular num país europeu entraram regularmente. Entraram com um visto turístico. Portanto, esses imigrantes não podem ser detectados no momento da entrada porque nessa altura tinham a sua situação perfeitamente regularizada. O que não diminui a importância dos controles de fronteiras. As vulnerabilidades no controlo da fronteira externa da União Europeia põem em risco a liberdade de circulação interna à União Europeia. Há oito países da União Europeia que já impuseram restrições à liberdade de circulação interna, restabelecendo controlos fronteiriços nas fronteiras internas.

Mas vamos à ACT em Portugal.
Todos os países europeus apresentam insuficiências em matéria de capacidade de controlo do mercado de trabalho irregular.

Como é que viu as operações de fiscalização lançadas recentemente em coordenação com o Governo, como aquela que ocorreu no Martim Moniz, com centenas de operacionais e que resultou na detecção de um imigrante ilegal?
Em primeiro lugar, essas operações não podem ser vistas apenas na lógica da imigração ilegal. São acções conjuntas de forças policiais que têm como objectivo identificar situações de criminalidade. Houve um imigrante ilegal e 694 detenções por outro tipo de actividades criminosas. Ninguém pode ser contra acções policiais que visam combater o crime. O que está errado é vê-las apenas na óptica da imigração ilegal, porque, felizmente, nós não temos um problema estrutural de imigração ilegal. Uma vez resolvido o problema da regularização dos 400 mil, sim, aí estaremos em condições de avaliar qual é a real dimensão da imigração ilegal em Portugal.

Mas como é que vê o facto de ser o Governo a promover, até do ponto de vista comunicacional, estas operações policiais? Temos o Governo quase a traçar as prioridades de certas actividades operacionais.
Um Governo de centro-direita tem de também se preocupar com a imagem que tem quando está acossado por um partido de extrema-direita populista que faz das questões de segurança em geral uma arma de arremesso e um instrumento de acção política.

O facto de o Governo ter vindo mais à linha da frente para assumir tem um objectivo político. Acções policiais conjuntas existiram sempre, com maior ou menor intensidade, mesmo em governos de esquerda. Dir-me-á, um governo de esquerda seria mais discreto? Provavelmente, sim.

No Partido Socialista, a associação de imigrantes com criminalidade tem sido discutida nas últimas semanas, na sequência de declarações polémicas do autarca de Loures. É inevitável este discurso chegar também aos partidos de esquerda?
As declarações do presidente da Câmara de Loures não têm nada que ver com a imigração. Têm que ver com uma questão de ordem pública. A ideia de que a imigração é fonte de criminalidade... Não vale a pena tentar construir uma narrativa como Trump construiu agora nos Estados Unidos. Porque mesmo nos Estados Unidos os números mostram que a criminalidade violenta e a de pequena dimensão desceram. Aqui em Portugal as estatísticas da criminalidade são equivalentes.

Sou completamente avesso à ideia de que há uma ligação entre imigração e criminalidade. Agora, acho que temos de ter uma discussão racional sobre a imigração. É verdade que a imigração, sobretudo em virtude do facto de ter havido um crescimento muito rápido e num curto espaço de tempo, pode ser uma fonte de intranquilidade nas comunidades. Isso é uma questão que não se pode desvalorizar.

Mas é muitas vezes uma questão de percepção da própria sociedade.
O drama na política de imigração é que as percepções e as realidades muitas vezes estão muito afastadas, mas não podemos ligar só às realidades. Também temos de incorporar nas nossas acções as percepções. Porque, se nós nos ativermos apenas à realidade e ignorarmos as percepções, estamos a criar novas realidades com essa atitude.

E, portanto, nós não podemos rotular como racistas e xenófobos todos aqueles que se sentem desconfortáveis perante os fluxos migratórios, porque num país como o nosso, mas na generalidade dos países de destino, conviver com a diversidade é um exercício às vezes difícil. Aprender que a nossa sociedade se está a transformar é uma aceitação difícil para muitas pessoas que estavam habituadas à sua zona de conforto. Isso significa que nós temos de ter uma estratégia de integração dos imigrantes na sociedade portuguesa. E que o resultante dessa estratégia de imigração tenha de ser o reforço da coesão da sociedade. Exige um esforço permanente. E exige sobretudo que nos dediquemos aos sítios onde essa questão se joga mais permanentemente: os locais de residência, em que temos uma crise de habitação; o local de trabalho e as escolas.

Vamos avançar para a política internacional. E como é que vê o escalar do conflito Rússia-Ucrânia? Também diz que, como já algumas pessoas dizem, estamos perante uma terceira guerra mundial?
Há as chamadas self-fulfilling prophecies​. Recuso-me a entrar nesse caminho. Agora, como é evidente, estou muito preocupado. Esta escalada não augura nada de bom com a decisão da utilização ainda que limitada dos mísseis americanos de longo alcance que foram entregues à Ucrânia.

Estamos numa situação muito delicada porque, do ponto de vista dos princípios, não é possível deixar de reconhecer que o momento para o diálogo e para a paz tem de ser determinado pela Ucrânia.

Os termos dessa negociação vão ser muito difíceis. Não tenhamos sobre isso a menor ilusão porque, do outro lado, está uma potência expansionista que vê a anexação dos territórios do Donbass como integrando o próprio território nacional, na medida em que foi alterada até a Constituição.

Nunca estive convencido de que neste conflito pudesse haver uma vitória militar no terreno das armas de um lado ou do outro.

E, esta semana, a decisão dos EUA de autorizar a Ucrânia a usar mísseis de longo alcance ocidentais na Rússia tornou um bocadinho mais difícil esse passo das negociações.
Bom, depende da evolução do próprio conflito no terreno. Nós, isso não podemos antecipar.

Mas, a seu ver, era inevitável que o Ocidente desse esta autorização ou preferia que isso não tivesse acontecido?
O que dizem é que é tardia. Dia 20 de Janeiro haverá um novo inquilino na Casa Branca. E nós não sabemos verdadeiramente o que é que o novo inquilino da Casa Branca fará. Trump é um personagem errático.

Isso dá-se à possibilidade de uma visão apocalíptica do que vem aí.
Já lhe disse, não me vai conseguir arrancar uma frase de Armagedão. Recuso-me a admitir que estejamos todos envolvidos num túnel de suicídio colectivo.

O facto de o Exército norte-coreano ter entrado em cena significa o quê?
Aí está uma coisa que me surpreendeu. Muito mesmo. Não sabemos quais são as contrapartidas que a Rússia deu à Coreia do Norte para esse envolvimento.

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