Associações não voltaram a ser contactadas pelo Governo sobre situação nos bairros
Ativistas falam numa “manobra política” que “morreu na praia”. “O Governo queria era salvar a pele, porque a contestação estava a crescer e era preciso estancá-la”, diz Mamadou Ba.
Representantes das associações convocadas pelo Governo após a morte de Odair Moniz, há um mês, não voltaram a ser contactadas, denunciando o que dizem ter sido "uma manobra política" e criticando a opção por uma "política policial".
Flávio Almada, Mamadou Ba e Paula Cardoso - que falaram à Lusa no dia em que foram recebidos pelo Governo, em 29 de Outubro - confessam não estar surpreendidos por não ter "acontecido nada" na sequência da reunião, que teve lugar dois depois de uma grande manifestação em Lisboa contra a violência policial e pedindo justiça pela morte de Odair Moniz.
"Não houve reacção do Governo, nem nenhum contacto vindo do Governo no rescaldo da reunião que tivemos", relata Mamadou Ba, da associação SOS Racismo, considerando que o executivo "não está preocupado em encontrar soluções para coisa nenhuma".
Na opinião do activista, o objectivo da reunião "era apenas apagar fogos, para tentar controlar a situação": o Governo quis "dar a ideia de que estava tudo sob controlo e que tinha uma certa preocupação com aquilo que estava a acontecer, e que até estava a discutir e conversar com as organizações que se movimentam em torno das questões da violência racial, da exclusão social e da marginalização dos bairros e das pessoas que vivem nos bairros, mas, na verdade, nada disso era verdadeiro, transparente, honesto", aponta.
Em suma, "foi uma manobra política" e "o destino das manobras políticas é morrerem na praia", constata, criticando: "O Governo queria era salvar a pele, porque a contestação estava a crescer e era preciso estancá-la, controlá-la e abafá-la."
Porém, garante, se o executivo pensa que o conseguiu, "está enganado, porque o racismo e a exclusão social não acabaram, portanto a organização e a mobilização em torno da violência racial e da exclusão social também vão continuar".
"Depois da reunião, não tive contacto nenhum", confirma Paula Cardoso, da organização Afrolink, reconhecendo que tinha a "expectativa" de que, na sequência do encontro, "houvesse um email" com "um agradecimento formal" e "sumarizando aqueles que foram os pontos-chave da discussão".
"Não se não se deu nenhum passo, pelo contrário", corrobora Flávio Almada, do movimento Vida Justa, observando "uma intensificação da política de perseguição e criminalização dos imigrantes".
Paula Cardoso acompanha-o, dando como exemplo a campanha "Portugal Sempre Seguro", recentemente lançada, para dizer que o Governo tem dado "sinais" de uma "profunda alienação", preferindo "disponibilizar recursos para lidar com percepções em vez de os canalizar para resolver situações, realidades que estão mais do que diagnosticadas".
"A política que o Governo tem é uma política policial, de repressão [...] e não uma política humanizada", lamenta.
"A solução não passa por um projecto securitário, nem de perseguição aos imigrantes, mas por ter mais políticas públicas para combater as desigualdades, criar políticas culturais, fazer algo com as pessoas, de uma forma participativa, construir uma solução comum para a sociedade", contrapõe Flávio Almada.
Na reunião - recorda - "não se discutiu nada concretamente", nem se falou de programas ou políticas sociais para resolver os problemas dos bairros, porque o Governo tem "um preconceito ideológico". Aliás, no espaço público, "a questão fundamental, a questão social, foi esvaziada e passou-se a discutir a tipologia de polícia", reduzindo o debate "a um problema de segurança".
O executivo "não está preocupado em encontrar soluções para as questões da violência policial, da exclusão social, da desigualdade racial", realça Mamadou Ba, que assume o "receio de que este Governo venha a destruir o pouco" que foi conseguido nos últimos anos, nomeadamente o primeiro Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação e o Observatório do Racismo e da Xenofobia.
Na reunião de 29 de Outubro, o Governo perguntou às organizações "o que se podia fazer para melhorar os instrumentos existentes, mas depois não disse mais nada, não tomou iniciativa - está à espera de quê?", questiona.
Quem governa "não sabe o que é que há-de fazer com o Plano" e pediu às associações que identificassem as prioridades na sua implementação, lembra Paula Cardoso. "Como se fosse uma responsabilidade nossa governar, como quem diz 'isto é um problema vosso, nós estamos aqui deste lado, enviem lá as vossas propostas e depois logo veremos'", critica, recordando que o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação esteve em consulta pública e resultou de meses de trabalho de um grupo de pessoas com muita experiência.
Mamadou Ba não duvida de que "não será este Governo que vai encontrar soluções" para a situação nos bairros, desde logo porque "é chefiado por alguém que diz que não há problemas raciais".
Um mês depois da morte de Odair Moniz, baleado por um agente policial, Flávio Almada lembra que também ainda "não se apurou a responsabilidade política" sobre o que aconteceu, tendo-se assistido à "criminalização da vítima e da comunidade".
A Lusa questionou o Ministério da Presidência, que convocou a reunião de Outubro, mas ainda não obteve resposta.
O Vida Justa - que organiza no domingo uma Assembleia Popular dos Bairros - promete "continuar a lutar para que se faça justiça, pelas vítimas mortais e outras traumatizadas pela repressão policial, pelo fim das zonas urbanas sensíveis e pela desmilitarização da esquadra de Alfragide", situada às portas do Bairro do Zambujal, no concelho da Amadora, onde Odair Moniz vivia.
O cabo-verdiano de 43 anos foi baleado por um agente da PSP, no Bairro da Cova da Moura, no mesmo concelho, em 21 de Outubro, tendo-se seguido uma série de tumultos no Zambujal e noutros bairros da Área Metropolitana de Lisboa, onde foram queimados e vandalizados autocarros, automóveis e caixotes do lixo, somando-se sete pessoas feridas, uma das quais com gravidade.