A viver em quatro quarteirões

Talvez, o caminho seja a construção de uma pequena sociedade alternativa, uma aldeia, com amigos de fé, irmãos camaradas, para viver, confortavelmente, em quatro quarteirões, longe de Trumps e Musks.

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Brian Cullman é a décima geração de um nova-iorquino. Jornalista musical, escritor, cantor e compositor, que esteve na gênese da música americana dos anos de 1970, no East Village, Nova York. Um Forest Gump da música norte-americana do Norte, que conviveu, lado a lado, com meus ídolos da cultura e da música: Andy Warhol, Leonard Cohen, Jim Morrison, The Stooges…

Tive a sorte, por acaso, de encontrá-lo há 20 anos nas ruas do Greenwich Village. Produziu um de meus álbuns, alguém com quem tenho contacto diário desde então. Sir Cullman anda, todas as manhãs, cinco minutos de sua casa, na Grove ST, até o Café Picelino, às 8:25 da manhã, para ser o primeiro cliente a tomar um flat white, contemplando os transeuntes da 7ª Avenida.

Brian vive em quatro quarteirões, onde conhece a florista, o padeiro, o dono do talho, o livreiro e a fachada de cada um dos prédios e a história deles. Compõe há décadas sua aldeia própria e, com isso, fica ileso, com seus cabelos prateados, do cenário de um mundo americanizado, dominado por red necks e white trashes, de Musks e Trumps. Talvez, esteja certo. Talvez, seja mais fácil criar um novo “mundinho” do que concertar o “mundão”.

Ando pensando que, talvez, seja o caminho: a construção de uma pequena sociedade alternativa, uma aldeia, juntar aqueles amigos de fé, irmãos camaradas, e viver como Brian, confortável, com cada metro quadrado desses tais quatro quarteirões. Ando falando disso com alguns comparsas próximos.

Há 30 anos, o compositor paulistano André Abujamra lançava O mundo, um dos temas do álbum de estreia de sua deliciosa banda Karnak.

“O mundo é pequeno pra caramba
Tem alemão, italiano e italiana
O mundo filé milanesa
Tem coreano, japonês e japonesa
O mundo é uma salada russa
Tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia
O mundo é uma esfiha de carne
Tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire
O mundo é azul lá de cima
O mundo é vermelho na China
O mundo tá muito gripado
O açúcar é doce, o sal é salgado
O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho, tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata, o homem que mente
Por que você me trata mal
Se eu te trato bem
Por que você me faz o mal
Se eu só te faço o bem.”

Infelizmente, não podemos todos nos sentar à mesa numa sessão de terapia grupal parental com nossos irmãos da Pérsia e da Prússia, tampouco dar doses cavalares de Dra. Nise da Silveira aos red necks do Texas ao Tocantins. Como ela dizia: “A palavra não atinge certas camadas mais profundas. A significação destes conteúdos do inconsciente não vem através da palavra e, sim, da imagem. Se você quiser, você traduz a linguagem racional, mas vai empobrecer”.

Sendo assim, já podemos imaginar a imagem de nossa aldeia. Não teremos números em nossas casas, mas não tenho dúvidas de que um bom carteiro há de nos encontrar apenas para entregar cartas de amor tranquilo, com sabor de fruta mordida.

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