A professora calada

Não teve capacidade para soltar um som ­— uma pessoa habitua-se a não fazer, a não ser, com mais facilidade do que imaginaria.

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Conto: A professora calada Getty Images
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Como Elisabet no filme Persona, um dia, a professora deixou de falar. Remeteu-se ao silêncio e por mais que tentassem arrancar-lhe uma palavra que fosse, a língua cosia-se ao céu-da-boca e nem um mínimo «le», que é o som que a língua tenta sacar ao céu-da-boca, lhe saía.

Perdeu o emprego, claro está, pois se durante a aula se tinha prostrado diante da plateia de estudantes, fazendo um gesto indicativo de quem se encontra doente da garganta e escrevendo no quadro os exercícios que eram para fazer, à terceira aula em silêncio e já com a directora de departamento a vigiá-la, foi demitida.

Não tinha nenhum problema físico, simplesmente perdeu o ânimo da fala. Sentia-o como um acto extenuante. Perdeu a fala e o emprego, e o marido também não tardou a deixá-la. Disse-lhe que não tinha feitio para viver com uma mulher silenciosa, que uma mulher em silêncio nem sequer era digna de ser mulher, que as mulheres tinham sido feitas para falarem demais e serem mandadas calar, pelo menos de vez em quando. Só o cão parecia não se importar com o silêncio. Era o único que não estranhava. Os meses foram passando e percebeu que sobreviveriam enquanto tivesse o dinheiro do fundo de desemprego.

Uma manhã, acordou com a ponta da língua colada ao céu-da-boca. Uma ponte levadiça que impedia a passagem de alimentos. Teve então de deixar de comer. Resistiu ainda durante alguns dias sem comida e bebida. Doía-lhe a cabeça, o estômago e a barriga. Porém, pensou que se sobrevivia à falta de fala, sobreviveria também à falta de comida. Quando as coisas começaram a apagar-se aos poucos ao seu redor e sentiu dormência na língua e no céu-da-boca, tudo perdeu os contornos de realidade, até o cão já quase não existia.

Arrastou-se e ligou para o INEM mas não teve capacidade para soltar um som ­— uma pessoa habitua-se a não fazer, a não ser, com mais facilidade do que imaginaria. Uma chamada de ajuda em vão e perdida. O cão ladrou durante uns dias.

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