Acredita mesmo que todos têm o direito a crescer numa família?

Somos uma aldeia. E, como tal, cabe-nos cuidar de todos, sobretudo daqueles que não conseguem fazê-lo sozinhos e precisam de apoio

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Megafone P3: Acredita mesmo que todos têm o direito de crescer numa família? Adriano Miranda
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Tenho 20 anos. Fui retirada da minha família biológica aos 3 anos, vivi sete anos em acolhimento residencial e estou, desde os 10, em acolhimento familiar. Já vos contei a minha história antes (aqui e aqui).

No dia 20 de novembro, celebra-se a Convenção sobre os Direitos da Criança. Neste mesmo dia, milhares de crianças até aos 10 anos em Portugal irão para os seus colégios e escolas de pijama em comemoração do Dia do Pijama, uma iniciativa da Mundos de Vida, entidade que me orgulho de dizer que foi a enquadradora da minha família de acolhimento. Enquanto estas crianças vestem os seus pijamas para lembrar a importância de uma família para cada criança, eu penso nos números. Representam vidas, histórias e sonhos em construção, mas também trazem consigo dor, tristeza e sonhos interrompidos.

Publicado em junho de 2024, o Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (Relatório CASA), referente ao ano de 2023, diz-nos o seguinte: há 6446 crianças e jovens em acolhimento em Portugal. Destes, 263 estão em acolhimento familiar; 5409 em casas de acolhimento; as restantes noutros tipos de resposta (por exemplo, casas de acolhimento especializado). No total, há 3161 crianças dos 0 aos 14 anos de idade; 2065 entre os 15 e os 17 anos; e 1220 com 18 ou mais.

Eu faço parte do último grupo, o dos 1220 jovens que continuam sob medidas de promoção e protecção. Desses, 555 são raparigas, como eu. Para mim, são mais que números; é um projeto de vida, para toda a vida.

Ao longo destes anos, aprendi que a vida é feita de pessoas. Contudo, como podemos ignorar números que falam de tantos que, ao contrário de mim, nunca tiveram a oportunidade de viver numa família de acolhimento? Que nunca conheceram o hino do Dia do Pijama, nem a mensagem que ele este ano nos traz: "Com amor, todos podemos mudar a vida de alguém"? E, ironicamente, como lidar com o facto de que crianças institucionalizadas talvez vejam os seus colegas vestidos de pijama, celebrando uma causa que, cruelmente, ainda não chegou até elas? Penso muito nisto.

Hoje, celebro a dedicação de alguém que mudou a minha vida, mas não esqueço aqueles que ainda esperam. Esperam por uma família que os veja além dos números, além dos relatórios. Esperam pelo direito fundamental de crescer num lugar a que possam chamar casa, junto de pessoas a quem possam chamar família. Mesmo que seja apenas por um tempo, enquanto aguardam o regresso à sua família biológica ou avançam para um novo projeto de vida, seja ele a adoção ou a autonomia.

Ao celebrarmos a Convenção sobre os Direitos da Criança, é essencial perguntar: será que estamos realmente a garantir que todas as crianças e jovens em Portugal têm as mesmas oportunidades? Será que acreditamos mesmo que todos têm o direito de crescer numa família? Sinceramente, acho que não. Sabemos os números, vestimos o pijama, mas no dia seguinte tudo volta ao mesmo: longe da vista, longe do coração. Será que já lemos a Convenção? Já refletimos sobre se acreditamos que ela só se aplica aos “nossos” e não “aos filhos dos outros”?

Se acreditamos que se aplica a todos, é hora de agir. Porque somos um coletivo, somos uma aldeia. E, como tal, cabe-nos cuidar de todos, sobretudo daqueles que não conseguem fazê-lo sozinhos e precisam de apoio. O Dia do Pijama é mais do que um dia de celebração; é um apelo à consciência coletiva. Porque, como o hino deste ano nos recorda, com amor todos podemos mudar a vida de alguém. E mudar a vida de uma criança é transformar o futuro de todos nós.

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