Sujeita a uma década de abusos sexuais, Gisèle diz: “Está na hora de mudar a sociedade que banaliza a violação”

A vítima foi violada cerca de 200 vezes. Amigos, esposas e namoradas dos réus disseram que homens eram “respeitadores” na vida quotidiana. “Em que momento foram respeitadores comigo?”, questionou.

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“Para mim [os 51 homens acusados] são todos culpados”, disse Gisèle Pelicot Sarah Meyssonnier / REUTERS
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Gisèle Pelicot voltou esta terça-feira a tribunal. A mulher francesa que foi sujeita a quase uma década de violações por diferentes homens — todas orquestradas pelo marido, que a drogava para a submeter aos crimes — reiterou a mesma ideia que tem vindo a disseminar: a culpa não é da vítima, mas do criminoso. “Está na hora de mudar a sociedade ‘macho’ e patriarcal que banaliza a violação, está na hora de mudar a forma como olhamos para a violação”, afirmou.

Amigos, esposas, namoradas dos homens acusados testemunharam. Gisèle Pelicot, de 72 anos, ouviu-os a dizer que os homens que alegadamente a violaram eram “respeitadores” na vida quotidiana. “Em que momento foram respeitadores comigo?”, questionou a mulher, que considerou que muitos dos depoimentos sugeriam que era “quase banal” que tivesse sido sujeita a abusos.

“Já vi os que admitem a violação e os que a negam. Quero dizer a estes homens: quando entraram naquele quarto, em que momento é que a Madame Pelicot vos deu consentimento?”, perguntou, referindo-se a si na terceira pessoa. “Em que momento é que se aperceberam deste corpo inerte? Quando é que perceberam que o que estava a acontecer não era normal? Foram logo embora? E em que momento é que fizeram queixa na polícia?”.

“Para mim [os 51 homens acusados] são todos culpados”, garantiu, acrescentando que não lhe cabe julgar legalmente: “O tribunal fará o seu trabalho.”

Dominique Pelicot confessou os crimes: “Eu sou um violador”, afirmou na primeira vez que falou em tribunal. Durante nove anos, entre 2011 e 2020, esmagava comprimidos para dormir e ansiolíticos — três comprimidos de 2,5 miligramas numa “pipeta” — que depois colocava num café da manhã, num puré ou num gelado que levava à mulher para a deixar inconsciente. Era através de um fórum online em que os membros fantasiavam sobre actos sexuais não consentidos, que Dominique Pelicot chamava homens que iam a sua casa e violavam a mulher.

Depois de, em 2020, o acusado ter sido preso por estar num supermercado a filmar por baixo das saias de mulheres, as autoridades encontraram numa pen uma pasta intitulada “abusos” com 20 mil ficheiros. Eram registos das cerca de 200 vezes que Gisèle Pelicot tinha sido violada, a maior parte pelo marido e mais de 90 vezes por desconhecidos. Desses, apenas 51 foram identificados e enfrentam uma pena até 20 anos de prisão por crime de violação agravado.

Na mesma pen, havia outra pasta: À volta da minha filha, nua. As fotografias lá guardadas mostravam Caroline Darian nua, deitada de lado numa cama, aparentemente a dormir. A filha de Gisele e Dominique Pelicot acredita que também foi sedada pelo pai. Esta terça-feira, o advogado de Darian questionou Dominque Pelicot sobre as fotografias. “Não me lembro de tirar essas fotografias”, garantiu o acusado. E olhando para a filha, disse: “Nunca te fiz nada”. “Estás a mentir. Não tens coragem de dizer o que fizeste, não estás a dizer nem metade da verdade”, vociferou a filha. Também as noras, Céline e Aurore, foram fotografadas nuas noutras circunstâncias, provavelmente com câmaras ocultas na casa de banho.

O acusado disse ter violado Gisèle Pelicot duas a três vezes por semana, para além das vezes em que levava outros homens para casa do casal. “Acho que isso deve ter sido no final [da década de abusos]. O meu corpo não teria aguentado”, disse a vítima. Nas primeiras análises realizadas em 2020, Gisèle Pelicot ficou a saber que tinha quatro doenças sexualmente transmissíveis e tinha estado exposta ao HIV seis vezes. Para além disso, chegou a achar que tinha Alzheimer devido aos “apagões” de memória que teve ao longo dos anos. Só depois percebeu que eram tudo efeitos secundários dos cocktails de medicamentos que o marido usava para a deixar inconsciente.

“Qualquer que seja o trauma que tragas da tua infância — e eu tenho alguns, ainda que não os mesmos — há um momento em que escolhes quem vais ser na vida. Vais para a direita ou para a esquerda, tornas-te criminoso ou não. Todos fazemos as nossas escolhas”. Gisèle Pelicot respondia a uma questão sobre o facto de Dominique Pelicot ter sido violado aos nove anos. Garante que acredita que aconteceu, mas não pode servir como desculpa para estes crimes. Depois, perguntaram à vítima se o agressor se sentia frustrado no casamento. “Ele tinha muitas fantasias que eu não conseguia cumprir”, afirmou, reiterando que a informação em nada é relevante para os crimes que o marido cometeu.

Parece impossível para a vítima “encontrar paz”. “Esta cicatriz nunca irá sarar”, afirmou, “terei de viver com isto a vida toda”. O julgamento ainda irá durar mais um mês, é esperada uma decisão a 20 de Dezembro.

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