O meu pai tirou a carta de moto aos 70
Alguns homens com quem me cruzo, dizem com admiração: “Oh Liliana, vi o teu pai a andar de moto! Aqui, pela minha terra não conheço outro homem da mesma geração que tenha conseguido tal feito.”
Parece que não é nada, mas foi talvez uma das maiores lições que o meu pai me transmitiu até hoje. Mas, antes, um parêntese. A minha impaciência leva-me a desistir de tudo em que fracasso. Não insisto. Correu mal, não volto lá mais. Lembro-me de, aos 11 anos, quase ter rasgado um pano bordado a ponto cruz, por causa de um nó na linha, e de a minha professora de trabalhos manuais ter concluído: “Ai Liliana! Nunca terias paciência para aturar um marido bêbado.” Mal sabia ela que não era só para os maridos ébrios, mas de uma forma geral, pouca paciência para tudo. Exceção para o meu ofício de jornalista, onde já se contabilizam algumas secas intermináveis, não sem antes instigar à guerra: “Olha, e se fôssemos todos embora?” Dão-me razão, mas não arredam pé e eu já virei costas, para me arrepender mais tarde. Devia ter ficado, porque todos gravaram o som e eu não.
Mas voltando ao meu pai, que não queria usar como estrela de crónica, a não ser que fosse por motivos verdadeiramente válidos. Se nesta edição, refletimos sobre como parar é morrer, talvez a história que partilho exemplifique na muche o tema. O meu pai cresceu no Cubal, em Angola, rodeado de motos, sempre a observar o irmão mais velho, com 15 anos, a tratar da mecânica delas e a participar em afamadas corridas. Há fotografias do álbum de família, que amiúde vão sendo partilhadas nas redes sociais, recordando e comprovando esses tempos. O meu pai, o caçula, fascinado a ver o irmão mais velho brilhar nas pistas, debaixo do sol quente de África. Talvez por isso, lhe tenha doído tanto a pergunta pronunciada pelo mano: “Quem és tu?” Explico. Há uma meia dúzia de anos, a sua referência da infância e adolescência foi diagnosticada com Alzheimer, o que o impossibilitou de continuar a ser o pulso de uma oficina de mecânica de motorizadas. E perante tão infeliz imprevisto, o meu pai tentou não se afundar na tristeza e sempre sorridente, continuou a questionar: “João, lembras-te das motos?”
Quiçá por não ouvir a resposta desejada, sei que depois de ter colocado uma prótese no joelho, o meu pai, um homem com quase dois metros de altura, achou que seria boa ideia tirar a carta de moto aos 70 anos. Pois bem, inscreveu-se, estudou, mas chumbou no Código da Estrada. E como ficou danado, porque não tinha lido os compêndios mais recentes, culpa da escola que não lhe tinha dado a devida atenção, decidiu persistir. Uma das minhas irmãs comprou-lhe os livros mais atualizados e o homem voltou a testar os conhecimentos, sem errar uma única questão. Código feito, chegou o dia do exame de condução. Sabendo que ainda coxeava, fruto da cirurgia recente, e desaconselhado até por uma filha enfermeira, o teimoso Fernando achou que teria agilidade suficiente para usar a perna esquerda e travar a moto. Não teve, magoou-se, e os jovens que com ele foram a exame foram aprovados. O meu pai regressou a casa triste, muito triste, deprimido até.
Podia ser o fim da história para qualquer comum dos mortais, mas não para o meu pai. Já sem coxear, ergueu-se mais uma vez e lá foi ele, seguro de que desta vez passava. E passou, nos ziguezagues pedidos, no para-arranca, sempre a escutar as orientações do examinador, pelo auricular do capacete. Os mais novos que assistiram deslumbraram-se com a sua perseverança e talvez tenham levado para casa a mesma lição que eu levei para a vida. Nunca é tarde demais e parar é mesmo morrer. O meu pai queria tanto conduzir uma mota que, a idade, a prótese no joelho, os conselhos vindos de quase todos, a pedirem que estivesse quieto, não tiveram força suficiente para o desmobilizar. E se algum dia eu chegar aos 70 anos, tenho a certeza de que irei recordar-me dele e da sua força e coragem e, aí sim, também eu serei capaz de tirar a carta de mota, de fazer aquela viagem adiada, de escrever aquele livro, de fazer o que me apetecer.
Alguns homens da sua idade com quem me cruzo, dizem com admiração: “Oh Liliana, vi o teu pai a andar de moto! Aqui, pela minha terra não conheço outro homem da mesma geração que tenha conseguido tal feito.” Talvez uma sondagem nacional ajudasse a perceber. Mas, para mim, o meu pai, por isso e por tudo, é mesmo único. Hoje, eu e ele, damos voltas juntos, pela serra. E quando o vejo na moto, parece um miúdo, feliz, sempre disponível para errar e voltar lá, à falha. Quando hesito em algo, quando acho que é tarde demais, ele diz-me sempre: “Então, estás parva? Isso nem parece nosso!” É só nosso, sim.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990