O remake de Emmanuelle – ou uma versão pretensiosa de As Cinquenta Sombras de Grey
Este remake desperdiça até a força tradicional do erotismo.
Depois do óptimo O Acontecimento (Leão de Ouro em Veneza), filme com uma âncora política e sociológica de uma solidez a toda a prova, Audrey Diwan escolheu atirar-se a um remake do célebre Emmanuelle de Just Jaeckin, um dos títulos “clássicos” daquela década, a de 1970, que foi o apogeu do erotismo mainstream e do namoro, que hoje parece quase inocente, entre o grande público e a libertinagem cinematográfica.
“Inocente” é coisa que uma Emmanuelle em 2024 já não pode ser: nenhum cineasta do mundo deixará de ter a noção, hoje, de que filmar o erotismo, o desejo, o sexo, se tornou um gesto essencialmente político.
Lançando a sua Emmanuelle (Noémie Merlant, uma actriz radicalmente diferente da Sylvia Kristel que imortalizou a personagem) no “não-lugar” de um hotel de Hong Kong, um hotel de um luxo incaracterístico que é uma concentração de todos os hotéis do mundo num só, Diwan abre essa pista: eis Emmanuelle no mundo incolor e inodoro do capitalismo contemporâneo. O lugar dela é de poder, como inspectora de “controlo de qualidade” ao serviço da cadeia proprietária do hotel (curiosamente, a relação mais palpavelmente tensa e ambígua ao longo do filme nada tem de erótico: é entre a gerente do hotel, interpretada por Naomi Watts, e a inspectora que tem a missão de encontrar uma falha qualquer que permita à proprietária correr com a gerente). E isso contrasta com o abandono desta Emmanuelle vaga e amorfa, quase um sonâmbulo pelos corredores do hotel, à beira da passividade total até nos encontros eróticos.
Mas entre o desenho político e o desenho pessoal da personagem alguma coisa nem chega bem a ligar-se – e isso dá cabo do filme. Uma questão de distâncias, em primeiro lugar, porque Diwan cola-se à imagem asséptica do ambiente do hotel sem encontrar a perspectiva que faça com que a colagem se torne uma crítica dessa imagem – é como se o filme se deixasse estar, sem atrito nem convulsão, nesse regime de imagem publicitária, de comércio de aparências, sem o virar do avesso.
Depois, o lado pessoal afunda-se em estereótipos que se diria terem sido erradicados há décadas (a personagem do hóspede japonês que é uma declinação do cliché do “oriental misterioso”), e que pretendem envolver a dimensão erótica numa profundidade “filosófica” que parece um amontoado caricatural de ainda mais clichés – devemos levar a sério aquele japonês?; devemos levar a sério aquele final cerimonial que definitivamente transforma esta Emmanuelle numa versão pretensiosa das Cinquenta Sombras de Grey?
Provavelmente, devemos mesmo, porque o filme não dá nenhum sinal em contrário. É uma Emmanuelle tão autoconsciente (até da sua própria infelicidade: “a tristeza é minha”, diz quando lhe falam dela) que desperdiça até a força tradicional do erotismo, que era lançar o caos na moralidade comum, sem oferecer nada em troca: um filme cheio de receio do caos, e cheio de receio da moralidade comum.