Amphora Wine Day do Rocim está a inspirar outras geografias a celebrar o vinho de talha
De 300 a 1700 visitantes. Sucesso do evento que o Rocim dedica há já sete anos ao vinho de talha é notícia além-fronteiras. Nomeadamente na África do Sul, onde Stellenbosch prepara festival idêntico.
Pedro Ribeiro, da Herdade do Rocim, recorda-se como na primeira edição do Amphora Wine Day, evento dedicado ao vinho de talha e que vai já no sétimo ano, as expectativas eram baixas. Pensou que “apareceriam umas 20 ou 30 pessoas, 50 no máximo”, mas, lembra, começaram logo “com cerca de 300 visitantes, o que foi bastante interessante.” Estava longe de imaginar que em 2024 não caberia nem mais uma alma na adega da propriedade situada entre a Vidigueira e Cuba, no Alentejo. Tal como em 2023, a afluência andou nas 1700 pessoas. Este ano, esse foi de resto o limite que organização se auto-impôs.
É possível medir, logo por aí, o sucesso do evento que, no último sábado, reuniu no Rocim perto de meia centena de produtores de vinho de talha e de ânfora, nacionais e internacionais. Mas também se percebe essa atenção noutro tipo de indicadores, como a presença de vários importadores de vinho — este ano, a parte da manhã, ainda antes de as portas abrirem ao público em geral, foi dedicada a profissionais e jornalistas —, nomeadamente do Brasil, o novo “El Dorado” para os vinhos portugueses, e a constatação de que o Amphora Wine Day já é inspiração lá fora.
“Isto é fantástico. Na verdade, estamos a tentar montar um festival [assim] na África do Sul. Depois de termos estado cá no ano passado, pensámos nisso. Estamos a pensar [fazê-lo] no próximo ano. Não sei dizer um número rigoroso, mas diria que nós temos mais de 50 produtores que produzem vinho com algum tipo de contributo das ânforas em toda a região, em Swartland, Stellenbosch, Constantia e Robertson”, partilhou com o PÚBLICO Emile Joubert, responsável pelo marketing de dez produtores sul-africanos e que estava no Amphora Wine Day a representar a Zleine Zalze.
“Cortados do resto do mundo até 1990”, depois do apartheid, os produtores e enólogos sul-africanos começaram a viajar mais e a inspirar-se no que outras regiões vitivinícolas mundiais estavam a fazer. Uma das técnicas de vinificação que mimetizaram foi a utilização de ânforas de barro, “há cerca de 20 anos”, conta Emile. “Os primeiros vinhos que fizeram em ânfora foram [vinhos das castas] Sauvignon Blanc e o Sémillon, o estilo de lote de Bordéus para os vinhos brancos.” O recipiente de barro, com uma história milenar, ainda é um recurso utilizado por “um nicho” na África do Sul, mas dá origem a vinhos “muito populares”.
A Kleine Zalze, por exemplo, produz anualmente três milhões de litros, e para os vinhos de ânfora criou o “Projecto Z”, uma gama de nove referências que totalizam 800 mil garrafas por ano. “Tornou-se algo que as pessoas já associam à Kleine Zalze. E é algo que o produtor comunica como característica diferenciadora.” No evento do Rocim, uma estreia — em 2023, o produtor tinha estado como visitante no Amphora Wine Day, a convite da Amorim Cork —, a Kleine Zalze só tinha um vinho à prova, mas para o ano a conversa já será outra. “Espero que possamos ter aqui mais três ou quatro produtores sul-africanos. Em Portugal, sentimo-nos em casa.”
Fernando Camargo era outro dos produtores que estava pela primeira vez no evento. “Num período de transição”, em 2021, o brasileiro deixou para trás a sua terra natal e a arquitectura para vir para a Beira Interior produzir vinho. Chamou ao seu projecto Barroca da Malhada: “colheita e prensagem manuais, vinhos de baixa intervenção, baixíssima adição de sulfuroso”, explica. Sempre se interessou por vinho e, em Tinalhas, Castelo Branco, encontrou uma propriedade que viu “como uma tela em branco”. “Uma propriedade histórica”, com cinco hectares, que pertencera aos viscondes de Tinalhas e onde havia vinhas com 25 anos.
A talha é apenas uma das ferramentas que utiliza, explicou, por seu turno, o enólogo Fábio Fernandes, enquanto nos dava a provar o Arinto de ânfora, de três colheitas diferentes. O arranque do projecto tem servido também para ensaiar diferentes caminhos. “A talha não é o mais típico na Beira, mas nós queríamos uma abordagem diferente e estamos a usar castanho e carvalho português, usamos a ânfora, usamos inox, claro... Estamos a tentar abordagens um bocadinho fora da caixa também, mesmo em relação ao que se faz na Beira.”
Fernando prefere manter segredo sobre o montante investido em Portugal, mas partilha que a motivação principal era “usufruir da propriedade” nesta fase da sua vida e que o objectivo “é produzir o melhor vinho possível daqueles cinco hectares”. Não está interessado em crescer para lá da capacidade produtiva das suas vinhas. Porquê participar no Amphora Wine Day? “Eu já conhecia do Brasil vários amigos que tinham vindo ao evento, que é superinteressante, porque, desde que começou, tem vindo a posicionar de uma forma diferente o vinho de talha, não é?”
Brasileiros ao vinho de talha
Não faltava gente com sotaque do Brasil no evento. Discreta, e desdobrando-se em provas e contactos, Juliana La Pastina representava o Grupo La Pastina, uma empresa brasileira de distribuição de bens alimentares e vinho, “com 77 anos”, e que desde 1999 tem uma divisão, a World Wine, “focada nos vinhos de nicho”. Trabalha com “3000 rótulos”, oriundos de 15 países. Desses, “Portugal é a quinta origem mais importante” e “o Rocim o produtor mais importante no portefólio” de vinhos portugueses que importa para o Brasil, representando “50%”, diz a gestora. Em volume, “Portugal hoje deve representar [para a World Wine] cerca de 10%”. Em valor, essa fatia já anda “em torno de 20%”.
Questionada sobre se o crescimento das vendas de vinhos portugueses para o Brasil poderia ser uma bolha que, mais tarde ou mais cedo, se esvaziaria, Juliana respondeu “pelo contrário”. E explicou: “Na minha visão, [é um mercado exportador que] tem muito potencial. Quando a gente olha o [consumo] per capita hoje [no Brasil], falando só de vinhos finos, excluindo o vinho de garrafão, que é elaborado com uvas não viníferas [outras que não da espécie Vitis vinifera], que tem uma grande produção no Brasil, isso dá pouco mais de uma garrafa por ano, por habitante.”
Ou seja, margem para crescer há. E há também, explica, um crescimento paulatino e generalizado no consumo de vinho num país que historicamente prefere a cerveja e a cachaça. “A gente precisa ampliar essa base. E o interessante é observar que isso está acontecendo inclusive em regiões que antes não consumiam vinho. Não é só São Paulo, o Rio de Janeiro ou Brasília.”
Na banca da Talha Máfia Wines, projecto local de seis amigos com laços familiares e uma das adegas ligadas à Associação de Produtores de Vinho de Talha (APVT), encontrámos mais uma proposta fora da caixa: o tinto de talha Torpedo, dentro de uma embalagem bag-in-box. “Foi uma teimosia nossa de início. Tentamos dar aqui um cunho nosso [ao vinho de talha], ou seja, quebrar as tradições. Queremos desmistificar a associação que existe do bag-in-box a vinhos mais correntes, ao pôr um vinho premium em bag-in-box”, explicou um dos seis “mafiosos”, Rui Baptista. Mais uma, porque nas mesas dos diferentes produtores encontrámos interpretações mais contemporâneas da tradição da talha: vinhos mais leves, sem tanta extracção, mais versáteis, vinhos do mundo.
Apesar de serem produtores de vinho boutique — a produção anual da Talha Máfia Wines é de 6000 litros — e de terem no site do projecto o seu principal canal de vendas, já têm distribuição em Lisboa e no Algarve e estão a exportar, claro, “com pouca expressão, para a Alemanha e a Ucrânia”, notou outro sócio, Joel Marques. Sem ligações fortes ao vinho, o grupo deixou-se levar pela enóloga Sofia Saraiva e embarcou numa aventura que continua a ser paralela às vidas profissionais de todos. “O convencimento foi só um: passarmos mais tempo juntos, em torno do vinho.”
Foi a terceira vez que participaram no evento do Rocim, que lhes trouxe “sobretudo exposição”, “junto de profissionais da restauração e da hotelaria, de distribuidores e de garrafeiras”.
Do Algarve à Geórgia
Na Arvad, produtor algarvio que estagia a Negra Mole em ânfora, para além de um tinto e de um branco feitos daquela casta autóctone, encontrámos também um rosé, feito com a mesma variedade, e um espumante de Arinto, cuja base foi à talha. “Representamos uma região que ainda não está muito representada neste tipo de vinificação, mas já há outros produtores no Algarve além de nós a fazer vinho em talha. Nós temos terrenos argilocalcários, a argila está presente logo na vinha e a nossa história está muito ligada à história dos fenícios, que traziam o vinho pelo rio Arade, traziam em ânfora, nas vinárias. E esse foi um dos motivos por que quisemos prolongar esse elemento e acrescentá-lo ao estágio dos nossos vinhos”, comentou Mariana Canelas, da área comercial da Arvad.
O produtor, claro está, incorpora esse contexto nas provas e actividades que oferece no seu enoturismo em Estômbar. Mas a verdade é que as referências vinificadas em talha já representam quase 25 mil garrafas na produção global da adega, que, em 2023, se cifrou em 120 mil garrafas.
Logo ao lado da Arvad, perdemo-nos à conversa com outro repetente no Amphora Wine Day. Archil Shinjikashvili, o chef de cozinha georgiano que se radicou há mais de 20 anos nas Caldas da Rainha, onde hoje vende os vinhos de talha feitos pela família que ainda permanece no país de origem. “O projecto dos vinhos começou em 2016, na Geórgia, com o meu primo. Quando, em 2018, eu fui provar o vinho dele pensei: ‘Epá, eu tenho que levar isto para Portugal’.” E assim foi, trouxe e continua a trazer o vinho de kvevri do primo, mais uma produção de nicho, para o seu restaurante, o Geo Wine & Supra, que abriu em 2019 e onde faz “cozinha de fusão”, e para alguns espaços em Lisboa.
“O nome original para a talha é kvevri”, faz questão de nos dizer. “A ânfora e a talha vêm depois. E as kvevri são enterradas na terra.” Uma prática com oito mil anos, tantos quantos os que tem a receita da churchkhela que nos dá a provar, juntamente com os vinhos. À primeira vista, e antes de as cortarem às rodelas, parecem enchidos pendurados num fio. Mas não são. “Já fazíamos barritas [energéticas] há oito mil anos. É sumo de uva reduzido a um terço, farinha e, no interior, nozes.”
Antes de juntarem esforços, o vinho do primo de Archil era só para o consumo de casa. “Na Geórgia, todas as famílias fazem vinho. Em qualquer sítio que esteja, se der uma volta de 360 graus, é impossível não ver uma vinha”, conta. O intuito nunca foi engarrafar, mas os familiares do georgiano já não conseguiam vinificar todas as uvas que produziam, vai daí, arranjaram uma adega, onde têm apenas “18 talhas”. O canal privilegiado de ligação a Portugal fez o resto. “As nossas produções são pequenas e podemos dar-nos ao luxo de ter os vinhos onde queremos. Desde que começámos, em 2019, o meu produto tem vindo a valorizar. Um vinho que comecei por vender a 7,5 euros, hoje vendo a 11 euros e tal, sem IVA. Não tenho de produzir muito, tenho de produzir bom.”
“Itinerante” é também o projecto de Rui Lopes e Vasco Rosa Santos. Lés a Lés é o chapéu para os vinhos que os dois enólogos consultores e amigos, ambos a trabalhar em diferentes regiões vitivinícolas do país, fazem nos terroirs por onde vão passando. “Nós apaixonamo-nos por alguma vinha ou por algum método de vinificação e fazemos no local. Dependendo da área, vamos procurar um amigo enólogo. E não há uma lógica de continuidade. Se nos apetecer não fazer no ano seguinte, não fazemos. Podemos voltar a fazer o mesmo vinho ou não”, conta Rui.
No Amphora Wine Day, estavam a mostrar um vinho feito em colaboração com o Rocim, precisamente. “Aqui, a nossa preocupação foi a fruta. A talha é uma talha pesgada, mas este foi o quinto vinho que lá passou. Isso quer que a talha não o marcou muito. Não tem aquele aroma... a talha. O que encontra é a fruta vermelha, são aromas mais directos. É um vinho com uma acidez média e que é muito elegante na boca. É um vinho que apetece beber.”
É também um dos vários vinhos que a Herdade do Rocim faz em colaboração com outros produtores e enólogos — no evento, estava até a lançar o tinto novo que fez com a Quinta da Pedregosa, para além de ter à prova, claro, o sem-número de referências que faz, a solo, na talha —, no mesmo espírito que leva os seus responsáveis a promover, pelo sétimo ano, o Amphora Wine Day.
“Tentamos todos os anos ter aqui alguma novidade. Há cerca de dois anos introduzimos as Amphora Wine Talks, um debate sobre os vinhos de talha e de ânfora. E, ao longo dos anos, fomos introduzindo cada vez mais gastronomia e temos tido cada vez mais restaurantes presentes [as refeições estavam disponíveis mediante a aquisição de senhas], assim como produtores de queijo e de enchidos”, sublinhou, ao PÚBLICO, Pedro Ribeiro.
Ressalvando que “o principal objectivo do Amphora Wine Day não era inicialmente fazer negócio, mas antes divulgar o vinho de talha e promover a região e Rocim”, o produtor e enólogo confirmou a presença cada vez mais interessante de profissionais brasileiros, “com oito ou nove representantes da distribuição” brasileira este ano no evento. Nota, contudo, que os portugueses continuam a ser “75% do público em geral”.
“A Rocim espera fechar este ano com 6,5 milhões de euros de facturação”, mais meio milhão que em 2023, sobretudo graças ao crescimento em novos mercados e à consolidação de outros. A exportação ronda os “65% a 70%”, para 49 mercados, com destaque para os EUA, a Suíça e o Brasil.