Os vinhos viajantes que se que tornam mais ricos e sumptuosos

Foi durante o século XIX que se deu o auge destas viagens, progressivamente desaparecidas com os navios a vapor e também a regularização do comércio que pôs fim ao trânsito de mercadorias sem destino.

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Em parceria com a Marinha Portuguesa, têm sido embarcadas várias colheitas de Moscatel de Setúbal, que repousam agora nas caves de Azeitão Marisa Cardoso / José Maria da Fonseca
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Esta é uma história de viajantes que voltaram de viagem mais ricos. A descoberta, empírica e fruto do acaso, fizeram-na os vinhos licorosos de Moscatel de Setúbal da José Maria da Fonseca, que cruzavam os mares rumo ao sul. Os cascos que regressavam a casa cheios, quando comparados com os congéneres que tinham ficado na adega, mostravam uma outra complexidade e riqueza gustativa. Tornaram-se vinhos lendários, com direito a designativo de qualidade: Moscatel Torna-Viagem.

Durante a época áurea dos negócios ultramarinos e da navegação portuguesa, pipas de vinho preenchiam os lastros dos grandes veleiros rumo ao Brasil, a África, à Índia, entregues à consignação aos comandantes das embarcações. Eram vinhos que não tinham destino ou compradores certos, acabavam por ser os marinheiros que, por entre as suas tarefas, funcionavam também como caixeiros-viajantes. Alguns acabavam por não encontrar comprador e as pipas faziam então a viagem de regresso a casa.

Uma vez devolvidos às adegas de Azeitão da casa José Maria da Fonseca, a de maior tradição e antiguidade na produção de Moscatel de Setúbal, os especialistas depararam-se com as suas novas e distintivas qualidades. Vinhos muito mais sumptuosos, mais evoluídos, ricos e complexos do que aqueles que tinham permanecido nas adegas. Era o efeito da longa viagem, o balanço do mar, as vagas salinas, a oxidação provocada pelas amplitudes e variações bruscas de temperatura, que os enriqueciam. Um feito acentuado pela dupla passagem pela linha dos trópicos com as viagens de ida e volta.

Mais surpreendente ainda porque estas seriam, à partida, condições nada recomendáveis para a saúde dos vinhos. Mas o facto é que na volta mostravam uma qualidade muito superior à que tinham à partida. Foi deste modo, como resultado do acaso e da constatação empírica, que nasceu a lenda e o prestígio dos vinhos torna-viagem.

Foi durante o século XIX que tivemos o auge destas viagens, progressivamente desaparecidas com os navios a vapor e também a regularização do comércio que pôs fim ao trânsito de mercadorias sem destino. Essa evolução só veio reforçar e acentuar a lenda e o prestígio dos vinhos torna-viagem, que se tornaram assim cada vez mais raros e especiais entre os Moscatéis de Setúbal.

A época moderna dos torna-viagem

Com raríssimos exemplares que sobrevivem nas caves da José Maria da Fonseca ou em garrafeiras particulares, só em alguns leilões ou lojas especializadas se conseguem encontrar algumas garrafas de Torna-Viagem — a Garrafeira Nacional anuncia na sua página na Internet uma venda, por 1.390 euros a garrafa, válida até ao dia 2 de Dezembro —, mas tudo indica que dentro de algum tempo possa surgir uma nova vaga de vinhos torna-viagem.

Já designada como a época moderna dos torna-viagem, resulta de uma parceria que a José Maria da Fonseca estabeleceu com a Marinha Portuguesa, aproveitando as viagens do mais célebre veleiro português, o navio-escola Sagres. Desde Janeiro de 2000, com a viagem comemorativa dos 500 anos da chegada ao Brasil, têm sido sucessivamente embarcados cascos de várias colheitas de Moscatel de Setúbal que, depois de terem cruzado os oceanos, repousam agora nas caves de Azeitão, à espera do tempo certo para o engarrafamento. Ao todo, foram já oito viagens, com destaque para a última, que para além de um casco de Moscatel de Setúbal de 1956 e outro de Moscatel Roxo de 1985, embarcaram também vinhos do ano 2000 que tinham já feito uma primeira viagem em 2007, sendo assim os primeiros a fazer uma dupla experiência de torna-viagem.

Em parceria com a Marinha Portuguesa, a José Maria da Fonseca tem embarcado no navio-escola Sagres Moscatéis das últimas duas décadas Fabrice Demoulin / José Maria da Fonseca
Casco de vinho da já apelidada época moderna dos torna-viagem Marisa Cardoso / José Maria da Fonseca
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Em parceria com a Marinha Portuguesa, a José Maria da Fonseca tem embarcado no navio-escola Sagres Moscatéis das últimas duas décadas Fabrice Demoulin / José Maria da Fonseca

Com início em Janeiro de 2020, no âmbito das comemorações do quinto centenário da viagem de circum-navegação, e programa de navegação para mais de um ano, esta prometia ser a mais ousada e arrojada experiência de torna-viagem, mas a pandemia de covid-19 forçou o regresso à base após quatro meses de mar. Mesmo assim, navegava já em águas do Pacífico, pelo que acabou por cruzar por duas vezes o equador. Depois de provados os vinhos, na José Maria da Fonseca, concluíram que teve uma alteração igual à das edições anteriores, ficando mais escuro e mais evoluído no aroma e paladar. Por nós, ficamos à espera da prova.

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