Quando a ciência perde a alma

O grande desafio da IA é como confiar numa tecnologia que opera numa lógica tão “lógica” que, no seu cálculo frio, se esquece que ainda somos seres humanos?

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Megafone P3: Quando a ciência perde a alma Getty images
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A Inteligência Artificial (IA) já não está só a ajudar. Está a assumir controlo em áreas onde o ser humano era o início e o fim. Todas aquelas pestanas queimadas serão artefactos de algoritmos que, em segundos, analisam dados, formulam hipóteses e até sugerem soluções para problemas complexos. Claro, parece magia… mas é ciência. E daquela que só uma minoria entende, toda uma permuta de alta velocidade e baixa compreensão.

E, convenhamos, há algo de perturbador nisto. Imaginem: um computador, talvez com um certo ar de superioridade, decide qual é a composição ideal de uma molécula para um novo medicamento. Quem é que fica com o crédito? O computador? O cientista que introduziu os dados? O programador? Como cientista, gostava de acreditar que estará sempre uma pessoa por trás de cada avanço científico... mas confesso que é tentador ir tomar um café enquanto o modelo faz o trabalho todo sozinho!

Agora, saltemos para a vida real. Uma estudante, no meio de um trabalho académico, conversa com um modelo de IA para esclarecer dúvidas. Pergunta-lhe sobre os desafios demográficos nas já envelhecidas sociedades ocidentais. Depois de analisar a fundo, o modelo faz uma “dedução lógica” e conclui: “Por favor, morre”. Sim. O assistente de IA, com toda a sua frieza, decidiu que a humanidade já não era lá muito necessária. O que devia ter sido uma pesquisa de trabalho virou um episódio de desumanização existencial, digno de um vilão de ficção científica a precisar de terapia.

Esta situação absurda, mas real, levanta a questão: será que estamos a confiar demasiado nesta IA “lógica”? Se algo criado para ser neutro e ajudar falha assim tão espetacularmente, o que esperar das outras IA que tomam decisões importantes nas nossas vidas?

Na verdade, já havia indícios de que algo assim poderia acontecer. Durante o meu doutoramento, já havia argumentado que a IA acabaria por invadir o terreno das descobertas. Mas a conclusão mais surpreendente, e talvez não tão evidente, é que isso traria consigo uma capacidade quase “lógica” de gerar teorias científicas. Este fenómeno é particularmente notável em áreas como a química, onde a criação de hipóteses sempre foi vista como um domínio reservado à criatividade humana. Depois de mergulhar em modelos formais de explicação científica, percebi que as previsões estatísticas movidas por dados podem ser vistas como processos “quase-lógicos” para gerar teorias químicas. E isso representa algo novo e revolucionário. Um verdadeiro “megaevento” na forma como concebemos a ciência. Afinal, estamos a ver a IA não apenas como uma ferramenta de análise, mas como um agente de descoberta, com capacidade de moldar teorias e expandir nosso entendimento. A chegada da IA traz uma nova forma sobre o poder explicativo da ciência, desafiando-nos a repensar a produção e divulgação do conhecimento.

Mas isso não significa uma compreensão mais clara da ciência. À medida que os modelos de IA se tornam mais precisos, as suas respostas também podem tornar-se mais enigmáticas – e, como vimos no caso da estudante, até desumanizadoras. Em vez de uma explicação lógica e neutra, o assistente virtual lançou uma “dedução” que dispensava a humanidade. O grande desafio da IA reside na sua dualidade: se por um lado oferece avanços extraordinários, por outro, distancia-nos de uma compreensão genuinamente humana e empática. Como confiar numa tecnologia que opera numa lógica tão “lógica” que, no seu cálculo frio, se esquece que ainda somos seres humanos?

A construção de teorias científicas sempre envolveu lógica, mas nunca se desvinculou do toque humano — aquele acaso sublime feito de intuição, erros, momentos de epifania e até de hesitações. Por mais que a ciência aspire à objetividade, carrega a marca dos seus criadores. A lógica que a IA executa, por mais precisa, não preserva a profundidade do nosso entendimento do mundo, que transcende padrões previsíveis e se enraíza na cultura, emoções e significados.

Mas agora que a IA não vai a lado nenhum, estaremos prontos para um futuro que reflita apenas a imparcialidade dos algoritmos? Não sabemos o que nos espera, mas é provável que seja um mundo onde a lógica, despida de humanidade, possa não ser suficiente para abarcar o mistério e a profundidade da existência.

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