Guiné-Bissau, o país interino

Num país onde “existe só um chefe”, tudo o resto é interino, ou de iniciativa presidencial, e até o dia de independência é comemorado noutro dia que não o verdadeiro dia da independência.

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A Comissão Nacional de Eleições tem um presidente interino, a Assembleia Nacional Popular (que foi dissolvida) tem uma presidente interina, o Supremo Tribunal tem um presidente interino, o Governo tem um primeiro-ministro de iniciativa presidencial, dois dos principais partidos (PRS e Madem-G15) têm direcções bicéfalas, a verdadeira e a que responde ao chefe supremo, a Procuradoria-Geral da República tem um procurador-geral que foi, deixou de ser e voltou novamente a ser, até o dia de independência é comemorado noutro dia que não o verdadeiro dia da independência e o pai da nação (Amílcar Cabral) já é mais o pai de uns e o padrasto de outros.

A Guiné-Bissau é um país interino com um chefe íntegro. Não no sentido de honrado, recto; antes, na acepção de inteiro, completo: um chefe que manda (ou quer mandar) em completamente tudo. O único Presidente efectivo, existente, definitivo, eficiente, eficaz, actual, certo, positivo, verdadeiro, real, permanente. Mas da lista de antónimos de interino que o dicionário nos oferece, nada serviria melhor aos desejos do chefe de Estado de todos e de tudo o que é guineense que a palavra “eterno”.

Esse mesmo chefe de Estado que marcou as legislativas de 24 de Novembro contra a opinião de quase todos os partidos que representam quase todos os guineenses – de acordo com a eleição de Junho do ano passado, que o Presidente não descansou enquanto não desfez, demitindo o Governo formado pela coligação maioritária no Parlamento antes do prazo permitido pela Constituição.

Aliás, o Presidente age como se a Constituição também fosse interina, como se estivesse à espera da entrada em vigor da proposta de revisão que enviou ao Parlamento e os deputados lhe fizeram a desfeita de nem discutir porque não cabe ao chefe de Estado promover revisões constitucionais, iniciativa reservada aos deputados da Assembleia Nacional Popular. Por essa desfeita, dissolveu o Parlamento e convocou eleições, só para ver os eleitores guineenses recusarem dar-lhe a maioria que ele queria. E ainda por cima entregarem-na ao seu arqui-rival (Domingos Simões Pereira, seu adversário nas presidenciais de 2019). Poucos meses depois, com pretexto de uma pretensa tentativa de golpe, dissolveu o Parlamento, e colocou lá uma presidente interina.

Num país com tradição de golpes, os alegados dois golpes que aconteceram no mandato do actual Presidente parecem tão pretensos que chamar-lhe tentativas já é exagero: se calhar, podemos chamar-lhes golpes interinos pois tal como todos os outros interinos do país só servem ao chefe íntegro, ou como o próprio diz, “existe só um chefe neste país”.

Assim como marcou as eleições legislativas, o chefe de Estado desmarcou-as. Alegou que foi a conselho do Governo, mas, como tão bem soube o primeiro-ministro Geraldo Martins, exonerado em Dezembro, o Presidente aproveita e bem a alínea m) do artigo 68.º da Constituição que permite ao Presidente da República presidir ao Conselho de Ministros quando entender. Ele entende que preside, sempre.

Constitucionalmente falando, o chefe de tudo e de todos é mais relutante a entender à letra o artigo 66.º no seu ponto n.º 1: “O mandato do Presidente da República tem a duração de cinco anos.” Talvez por causa do 66, o chefe já disse que só marcará eleições presidenciais para o final de 2025, o que implicará para ele um mandato de seis anos e não de cinco. Razão, nenhuma, pelo menos apresentada; há decisões que não se explicam.

Agora que a Coligação PAI-Terra Ranka, (vencedora das legislativas de Junho de 2023 e que sempre foi oposição ao chefe de Estado) e a Aliança Patriótica Inclusiva-Cabas Garandi (onde estão os que se foram antagonizando com o autoritarismo do Presidente) se juntaram a organizações da sociedade civil para convocar uma manifestação nacional (24 de Novembro), o Presidente decidiu ouvir novamente os partidos. E o mais provável é que volte a decidir como bem entende. No país interino da Guiné-Bissau, as decisões são unas e indivisíveis, as críticas tornaram-se assuntos de Estado e as discussões são ganhas sempre por quem manda.

O Presidente já disse que vai “permanecer no poder até para lá de 2030 e tal”, o que pressupõe não respeitar o limite dos dois mandatos de cinco anos que a Constituição actual lhe permite, mas talvez esteja à espera que, depois de dissolver dois Parlamentos, finalmente os guineenses lhe dêem uma maioria parlamentar que aceite a sua proposta de revisão Constitucional. Para que o poder total que exerce interinamente por sua iniciativa fique consagrado em letra timbrada. Como dizia há alguns séculos outro chefe íntegro sem pestanejar: “Quando se pode ter tudo o que se quer, não é fácil querer apenas o que se tem de ter.”

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