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Diversidade na tecnologia: onde estão as mulheres negras?
Não é preciso ir a outros países. Nós estamos aqui. Inclusive, no Web Summit, uma parte significativa das mulheres negras estava nos serviços de limpeza, muitas com potencial para empreender.
Apostando na diversidade e na inteligência artificial, o Web Summit, um dos maiores eventos de tecnologia e inovação do mundo, realizado na última semana, em Lisboa, terminou com saldo positivo, como afirmou a organização do evento. Como tudo no mundo do business gira em torno de números, 71.528 mil pessoas, de 153 países, 3.050 startups, 953 palestrantes, 1.066 investidores e 62 delegações comerciais fizeram com que esta edição fosse, de fato, uma das mais expressivas. Com destaque para a participação brasileira, que trouxe para Lisboa mais de 400 empresas.
A igualdade de gênero e a “diversidade” parecem ter mesmo entrado na agenda política do evento. Ponto positivo e muito necessário. Mais de 44% das startups participantes eram fundadas por mulheres, o maior índice até o momento, segundo a organização do evento. As mulheres também representaram 42% dos participantes e 37% dos palestrantes.
Enquanto o discurso da diversidade foi a aposta de empresas, delegações governamentais e do próprio Web Summit Lisboa, o fosso que ainda impera na indústria tech quando se fala da igualdade de gênero continua profundo. A própria organização divulgou os resultados do seu quinto relatório global, destacando que mulheres na tecnologia continuam mal remuneradas, sub-representadas e sub-financiadas. Conseguir financiamento para iniciar um negócio segue sendo um obstáculo.
Cerca de 51% das mulheres se sentem injustamente remuneradas em comparação com os homens, além de mais da metade das entrevistadas observar a falta delas em cargos de liderança, enquanto 76% se sentem capacitadas para liderar. E quase 50% sentem-se pressionadas a escolher entre a família ou a carreira no setor tecnológico. Mesmo com uma amostra pequena (1 mil entrevistadas), o relatório reflete que o caminho para que mais mulheres atuem no setor segue árduo e doloroso.
Se, para as mulheres de forma geral, as barreiras são imensas, quando fazemos o recorte étnico-racial, o fosso é ainda maior. Embora não haja números acerca da presença de mulheres negras na indústria tech, sendo realizadas pesquisas isoladas, apenas em nichos específicos ou por países, não precisamos ir muito longe.
Ao caminhar pelos estandes do Web Summit, era possível notar que a sub-representação de mulheres negras é uma questão emergente para os organizadores do evento e para a Câmara Municipal de Lisboa. Vale lembrar que, além de acolher o evento e apoiar com toda a infraestrutura e logística, cerca de 7,1 milhões de euros foram investidos pelo governo local.
Discursos de diversidade e igualdade de gênero que universalizam representações sem considerar recortes étnico-raciais são superficiais, que pouco mudam a realidade. Fica bonito em relatórios anuais, em apresentações de powerpoint (ou nos aplicativos com IA que já fazem até com imagens) para investidores, mas, na vida das mulheres negras, por exemplo, não faz diferença. E não é uma questão de boa vontade, mas de ação afirmativa, de políticas públicas que garantam acesso a programas de aceleração, incubadoras, profissionalização em áreas técnicas, financiamento e possibilidade de acessar linhas de microcrédito ou mesmo disputar investimentos nas cifras de milhões de euros que rondam o evento.
Não é preciso ir a outros países. Nós estamos aqui. Inclusive, nas voltas que dei pelo Web Summit, posso afirmar que uma parte significativa das mulheres negras estava nos serviços de limpeza. Conversei com várias, com enorme potencial para empreender, mas que ainda não encontraram oportunidades.
Antes que venham problematizar a questão com frases de efeito e senso comum, na matriz do racismo estrutural está sempre o discurso de que “não há mulheres negras com capacitação nas áreas de tecnologia”. Eu posso dizer, sem sombra de dúvidas, que conheço muitas. Mas, possivelmente, elas não estão empregadas em grandes companhias. As empresas de recrutamento e recursos humanos têm adotado cada vez mais inteligência artificial para selecionar currículos… E é bem possível que muitas delas tenham sido descatardas logo na primeira triagem. Racismo algorítmico. Mas esse tema fica para outra oportunidade.
Um ponto de partida
Criado para celebrar e promover a presença de mulheres negras no setor tecnológico, sobretudo, nos países de língua portuguesa, o evento Black Women in Tech, reuniu, na sua primeira edição, mais de 100 mulheres negras na Fábrica do Braço de Prata. Idealizado por Elisa da Costa, CEO da Afrokaana, e Neusa Sousa, CEO do Chá de Beleza Afro, a iniciativa independente não só reuniu mulheres negras de vários países que vieram à Lisboa para o Web Summit, como se constituiu em uma rede de apoio durante a semana que estiveram pela cidade. E, para as muitas que vivem em Portugal, ficou uma rica e potente rede de contatos.
Dividido em dois painéis, com palestrantes que já atuam no setor tecnológico em companhias ou nas suas próprias startups, as participantes discutiram os desafios que enfrentam ao iniciar uma empreitada na indústria tech. Entre as principais barreiras está o acesso a formações avançadas, que requerem um alto investimento pessoal ou mesmo ter de mudar de país. O que, sem bolsas de estudo, é praticamente inviável.
Quando já conseguem avançar na questão da formação técnica, a outra dificuldade é encontrar investidores e financiamento para seus negócios. E o que pode caracterizar um dado relevante é a própria barreira da língua, considerando que, para ter acesso a oportunidades, é necessário dominar a língua inglesa. O que sabemos que, no que diz respeito às mulheres negras, dominar vários idiomas não é uma questão a ser tratada de forma generalizada ou simplista, mas na perspectiva de políticas públicas.
Esperamos que, nas próximas edições do Web Summit, as mulheres negras estejam cada vez mais presentes, disputando investimentos nas rodadas de negócios, nos pitchs e, de fato, inseridas no evento. Antes disso, o Governo Português, a Câmara Municipal de Lisboa e o ecossistema do setor tecnológico têm uma enorme tarefa de casa para fazer.