Abusos sexuais: prolongamento do prazo é “mais um acto numa longa, atribulada e penosa cadeia de hesitações”
Nuno Caiado, subscritor da carta que impulsionou investigação dos abusos na Igreja Católica, diz que prolongamento do prazo para as vítimas é “mais um acto na atribulada e penosa cadeia de hesitações”
Como é que reage ao anúncio da Conferência Episcopal, esta semana, sobre o prolongamento do prazo para as vítimas apresentarem pedidos de compensação financeira?
Quando tomou conhecimento dos resultados intercalares dos trabalhos da Comissão Independente, a Igreja deveria ter iniciado de imediato um grande trabalho interno de preparação para enfrentar corajosamente o evidente terramoto que se adivinhava. Em vez disso, esperou pelo fim da comissão e, depois de andar meses a patinar no vácuo, cometeu um erro ainda maior: não seguiu integralmente as propostas da Comissão Independente, como estratégia de controlo interno de danos. Fez mal: teria sido mais doloroso, sim, mas teria sido obtida outra claridade sobre o tema, melhor metodologia e melhores resultados.
Por isso, este detalhe do prolongamento dos prazos não é mais do que mais um acto numa longa, atribulada e penosa cadeia de hesitações, ziguezagues num quadro de amadorismo em que é dada primazia ao formalismo burocrático, em vez de olhar de frente para o problema e as suas vítimas. A minha pergunta é sempre a mesma: onde estará Deus nestas decisões?
Faz sentido existir um prazo? A coordenadora do grupo Vita diz que esse prazo em nada impede que, doravante, qualquer menor ou adulto vulnerável possa queixar-se. Devemos encarar como “um prazo para os primeiros”?
Não estou seguro de ser necessário um prazo, nem alcanço o seu sentido. O prazo é encerrado mas, afinal, fora dele uma vítima pode queixar-se. Qual será o sentido disto? Eu compreendo a tentação de querer encerrar o assunto, mas corre-se o risco de ser mal encerrado por permanecer uma desconfiança e um mal-estar entre as vítimas, já declaradas ou eventualmente por conhecer.
Até agora são pouco mais de 50 os casos que avançaram para pedido de indemnização, o que parece pouco face ao número identificado pela comissão independente, culminando nos 512 testemunhos validados. Na sua opinião, o que impede uma vítima de querer ser compensada de alguma coisa?
Será um erro olhar para as vítimas como um bloco. Haverá diversidade em função do abuso e do abusador, da época, do contexto em que ocorreu, das características das pessoas envolvidas, dos prejuízos. Não me admira que haja necessidades e sensibilidades diferentes por parte das vítimas quanto às compensações. Porém, 50 (e poucos) casos é um número objectivamente estranho que faz pensar, e que deveria levar a Igreja a uma contínua introspecção, e a sua hierarquia a rever a metodologia usada. A minha opinião é que a Igreja sentiu pulsões distintas e contraditórias dentro de si, tendo vencido uma linha de compromisso de aceitação limitada da realidade e de limitação de estragos. À Igreja falta-lhe perceber que os abusos sexuais são inerentes a um modelo de poder imperial, napoleónico, masculino e clerical, a que acresce uma radical incompreensão da sexualidade humana.
Por vezes fica a ideia de que a Igreja parece continuar a travar a assunção de culpa neste processo. Não há nota pública de nenhum bispo que tenha vindo retractar-se por ser cúmplice no silêncio. Porque acontece isto?
Sabemos bem que há abusos porque há abusadores e há abusadores porque foram consentidos. Tudo isto é indissociável. Parece que na Igreja em Portugal, como noutros países, ainda não se tornou claro para os crentes (o mesmo não se passa com os não-crentes) que os abusos sexuais não são um fenómeno ocasional ou localizado. Hoje sabemos com inequívoca certeza que o problema está disseminado em todas as culturas e geografias, portanto é sistémico e endémico a determinado tipo de organizações, nomeada mas não exclusivamente as igrejas, e, de entre estas, as cristãs (tem sido referido que o problema pode existir noutras confissões, mas com mecanismos de controlo distintos). Pessoalmente, entristece-me e irrita-me que nenhum bispo tenha tido a coragem de abrir o dossier dos (seus) encobrimentos. Até que isso seja feito, e bem feito, não haverá paz nos corações das vítimas e de quantos se preocupam.
Os exemplos de outros países (como a demissão do arcebispo da Cantuária, da igreja anglicana) deveriam inspirar a Igreja Católica em Portugal? Que importância tem um gesto desses para as vítimas?
A cultura administrativa e de culto dos procedimentos e ritos na Igreja parece impedi-la de se inspirar em Deus e na figura central de Jesus Cristo. Isso deveria ser o bastante; mas se a demissão do arcebispo da Cantuária ajudar a perceber que há dores que saneiam e abrem caminho para a pacificação e purificação, então que olhem para o seu exemplo.
Acredita que alguma vez será feita justiça às vítimas de abusos no seio da Igreja em Portugal?
Alguma justiça está a ser feita, não devemos ignorar os esforços de quem lutou por ela e aquilo que foi alcançado. Mas, para quem tenha a paciência de parar e pensar um pouco sobre o assunto, não vejo como não concluir que é preciso ir mais além, e continuar a trabalhar para identificar vítimas e abusadores, não esquecendo os encobridores.