No último Halloween, um amigo surpreendeu-nos com um disfarce inesperado: “sou a 'Agenda LGBT'”, o monstro invisível mais temido da actualidade”. A reacção foi de risos, mas o desconforto logo se instalou. Afinal, num país com tantos desafios reais, continuamos a temer “monstros” imaginários. Portugal tem dos salários mais baixos da Europa, a crise habitacional empurra os locais para fora das cidades e a maioria dos jovens licenciados não avança economicamente. Ainda assim, é a “ideologia de género” a ameaça que aterroriza o país.
Mas afinal, o que é realmente este bicho-papão que tanto preocupa os bons pais de família deste país? A “ideologia de género” não tem definição académica ou jurídica. Foi propagada nos anos 1990 pelo Vaticano e tornou-se uma bandeira de movimentos conservadores. Esta ideia vaga tem sido usada para incitar o medo e sugerir que os valores tradicionais estão em risco. Mas será este um perigo real ou apenas uma ferramenta de manipulação emocional e política, destinada a ganhar poder?
O impacto dessa retórica é global. Na Colômbia, um referendo sobre um acordo de paz que visava encerrar mais de 50 anos de conflito armado, foi o primeiro a incluir uma abordagem de género, garantindo direitos a mulheres e pessoas LGBT, em reconhecimento das vítimas marginalizadas pelo conflito. Muitos viram essa inclusão como um marco para os direitos humanos, mas grupos conservadores, liderados pelo ex-presidente Álvaro Uribe, retrataram a medida como uma ameaça aos valores cristãos e à família tradicional.
Esse discurso transformou o “sim” ao acordo numa afronta aos valores tradicionais, manipulando o eleitorado através do medo. Em vez de um passo em direcção à paz, os colombianos foram levados a vê-lo como uma imposição de uma "ideologia de género". Resultado? O acordo foi rejeitado, demonstrando como o medo infundado pode influenciar decisões políticas, levando cidadãos a opor-se até à paz.
No Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro usou a “ideologia de género” como um dos pilares da sua campanha, apontando-a como uma ameaça esquerdista aos valores cristãos e à “inocência das crianças”. Na Europa, países como Polónia e Hungria também adoptaram o bicho-papão, usando-o para justificar políticas repressivas. Enquanto isso, em Portugal, o primeiro-ministro Luís Montenegro, atento às novas tendências, parece estar agora disposto a arriscar o futuro da educação e da inclusão em Portugal por meia dúzia de votos que ecoam discursos de intolerância e ódio.
Como é possível que um termo sem base factual tenha tanta força no discurso político? A resposta reside na combinação entre a rápida propagação de desinformação e o aproveitamento do medo como arma política. Com a ajuda de figuras políticas como Paulo Núncio e Joana Amaral Dias cria-se uma “caça às bruxas” que alimenta o pânico moral entre pais e grupos religiosos. Essa narrativa cria uma imagem deturpada do que realmente ocorre nas escolas, como se crianças fossem “forçadas” a aceitar uma “agenda LGBT”. Tais narrativas servem para alarmar o público e consolidar o apoio entre sectores mais conservadores, criando uma espécie de "círculo fechado" onde conservadores criam histórias para chocar… outros conservadores.
Enquanto nos distraímos com esta guerra fictícia, os problemas reais da educação em Portugal são ignorados. A escassez de professores, motivada pela desvalorização e precarização da profissão são questões urgentes que exigem atenção. Poderíamos também focar-nos na desigualdade regional no acesso à educação. Ou então, se tanto se preocupam com as crianças, e bem, porque não falamos sobre o preocupante aumento de casos de ansiedade, depressão e burnout entre os jovens e a falta de apoio psicológico nas escolas?
Enquanto nos dividimos e polarizamos sobre um conceito que não existe, perdemos de vista as desigualdades reais, o progresso da educação e os direitos humanos que ainda estão por conquistar.
No final, ainda há quem se questione: o que é a “ideologia de género”? A resposta é simples: é um espantalho inventado, preenchido apenas pelo imaginário de quem o teme. E isso é o que o torna tão perigoso. Não há aqui uma ameaça real; há uma ferramenta de manipulação. Cabe a nós questionar a quem serve esta invenção e o que estamos a sacrificar ao dar-lhe tanta atenção. Talvez seja hora de exorcizarmos os fantasmas que realmente nos assombram e deixarmos de nos distrair com monstros inventados.