As eleições norte-americanas servem de alerta para a Esquerda. Não foi uma eleição decidida pelo género, pela cor da pele nem pelas etnias. A explicação é substancialmente diferente. Devemos recuar ao ano de 2020: a vitória de Biden. Não por acaso o incumbente da Casa Branca recuperou o chamado muro azul, os Estados setentrionais com forte presença operária. Facto: Biden foi o primeiro presidente democrata das últimas décadas que não passou pelas universidades da Ivy League.
Os líderes democratas costumam estar mais próximos das elites do que o esperado. O discurso pontual sobre estas populações, sobretudo em períodos eleitorais, não apaga aquilo que Padre António Vieira imortalizou: "Palavras sem obras são tiros sem balas". Os insultos de Hillary Clinton ao eleitorado pouco instruído e, mais recentemente, as palavras indecorosas de Joe Biden não contribuem para a popularidade dos Democratas nestas franjas. Ora, evito aderir às teses de que todo o eleitorado de Trump é fanático. Obviamente, os fanáticos exacerbam os seus actos. Faz parte do historial, mais voltada para o seguidismo do que ao espírito crítico. Trump tem muitos eleitores fanáticos. Porém, outros votaram nele por razões diversas.
Nas últimas décadas, a Esquerda teve vergonha de defender os seus valores. A "terceira via" tem sido um desastre. A social-democracia não pode compactuar com o neoliberalismo. Os seus princípios não devem ser negociáveis, pois sem matriz ideológica resta um taticismo abominável. Abre as portas aos populismos cujo némesis é o alegado sistema, seja lá o que isso significa.
É fácil combater inimigos imaginários porque nunca podem tombar no combate. Assim, esta demagogia insuflada cresce como um cancro no corpo da Democracia. Na verdade, os políticos de Esquerda têm falhado imenso enquanto o desnível de riqueza no mundo assume contornos absurdos. As políticas identitárias, embora importantes, não são suficientes para atrair o eleitorado empobrecido. Porquê? Há uma discriminação mais premente: o fosso entre ricos e pobres. Liberdade sem igualdade de oportunidades não passa de privilégio. A missão política da Esquerda consiste em inverter esta tendência, ou seja, evocar o lado quixotesco do mundo porque sonhar é um direito humano.
Muitas pessoas têm medo do futuro. A extrema-direita compreendeu isto: oferece a ilusão do passado imaginado, mais convidativo do que um futuro imprevisível. Na minha opinião, a Esquerda deve semear a esperança onde reina o medo. Porém, essa esperança só pode brotar da coragem de ouvir os outros, de voltar às origens, de falar sobre a desigualdade independentemente da cor da pele, do género e da etnia.
Pobres são pobres. Padecem de violência exacerbada, terrível, tão forte que curva as expectativas. Assim, dividir as vítimas da desigualdade por grupos identitários só favorece a extrema-direita. Evito hierarquizar o sofrimento das vítimas. Quem sofre mais neste campeonato? Os latinos? Os afrodescendentes ou os caucasianos pobres? Recuso esta ideia divisionista, típica do neoliberalismo que coloca toda a responsabilidade no indivíduo quando a sociedade vicia o jogo a favor das elites. Daí a urgência de repensar a política no sentido colectivo, ou seja, de promover a solidariedade e a cooperação.
Desejo uma Esquerda de mangas arregaçadas, corajosa na defesa inalienável da justiça social. A Esquerda defensora da universalidade do acesso à saúde, educação, segurança e cultura; capaz de colocar o capitalismo ao serviço das pessoas em vez do contrário e que recusa o fatalismo, esse destino forjado desde o berço, pois acredita na liberdade humana e das suas instituições democráticas.
Anseio por uma Esquerda que nunca abandona os mais necessitados, os injustiçados e os famintos de esperança, mesmo quando votam noutro partido político. O social-democrata sabe que há algo mais importante do que a derrota ou o triunfo: é a justiça. Nunca deve abdicar deste princípio: todas as pessoas possuem dignidade. Quando foi a última vez que a Esquerda ousou sonhar em conjunto? Não devemos pedir desculpa pela defesa dos oprimidos. É radical? Não mais do que o privilégio conservado por alguns às custas de muitos. A esperança nunca teve cor, género nem etnia. Todas as pessoas merecem liberdade: para ser mais do que estar.
Votariam nesta Esquerda?