Assembleia Municipal de Lisboa acolheu reunião de extrema-direita, mas diz-se enganada

Segundo congresso do grupo ultranacionalista Reconquista contou com assumidos racistas e neonazis europeus. Presidente da assembleia terá sido ludibriada por alguém que se dizia do Chega.

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Foi requisitada uma sala da AML para um congresso do Reconquista Matilde Fieschi
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A Assembleia Municipal de Lisboa acolheu, no seu edifício-sede, no dia 2 de Novembro, situado na Avenida de Roma, o II Congresso do grupo de extrema-direita Reconquista, que defende a expulsão de imigrantes e contesta os direitos das mulheres e da comunidade LGBTQ+. A realização do encontro, noticiado pelo semanário Expresso na sua edição desta sexta-feira, foi confirmada ao mesmo jornal pela presidente daquele órgão autárquico, Rosário Farmhouse (PS), que, no entanto, diz ter sido enganada.

A requisição da sala teria, afinal, sido feita pela Juventude do Chega, diz Farmhouse. Mas esta organização alega também ter sido ludibriada. “Não temos nada a ver com isso. Foi um abuso”, diz ao PÚBLICO um dirigente da juventude do partido, demarcando-se do evento que terá sido vigiado, de forma discreta, pela Unidade Nacional de Contraterrorismo da Polícia Judiciária e pelo Serviço de Informações de Segurança (SIS), segundo o Expresso. Na manhã desta sexta-feira, o Bloco de Esquerda já veio exigir explicações sobre o sucedido.

Aquele encontro, realizado numa tarde de sábado após o feriado de Todos-os-Santos, havia sido anunciado no site da organização como “o maior evento nacionalista que Portugal já viu”. À reunião, que ocorreu com uma cenografia evocando o Estado Novo, compareceram as figuras mais destacadas do grupo extremista fundado no ano passado, tais como o seu presidente, Afonso Gonçalves, o jornalista Sérgio Tavares e os “comentadores políticos” Francisco Araújo e João Antunes. Servindo como chamariz para o evento, nela participaram também quatro oradores internacionais frequentemente associados a ideias racistas, fascistas e neonazis.

Entre eles estavam o inglês Steve Laws, apresentado como “activista identitário”. Autodenominado “caçador de migrantes”, Laws é frequentemente visto no seu canal de YouTube ou em manifestações a proferir impropérios contra requerentes de asilo e imigrantes. “Queremos milhões deles deportados”, tem dito. Ao congresso também foi o irlandês Keith Woods, apresentado como “intelectual e activista nacionalista” e que é frequentemente apontado como próximos dos ideais do grupo racista norte-americano Ku Klux Klan.

Outro dos participantes foi o belga Dries van Langenhove, membro do movimento de extrema-direita flamengo Schild & Vrienden, simpatizante da ideologia nazi e negacionista do Holocausto. No encontro foi apenas apresentado como “activista político e ex-deputado”. Thierry Baudet, fundador do partido neerlandês FVD e propagador de teorias da conspiração, foi outros do oradores.

Com tal elenco, não surpreende quais tenham sido os motivos orientadores do segundo congresso do Reconquista. “Neste momento crucial para a civilização europeia, onde as tradições, os valores, e a própria existência dos povos europeus enfrentam desafios sem precedentes, juntamo-nos a algumas das vozes mais influentes de Portugal e da Europa, pensadores, líderes e visionários que partilham uma mensagem poderosa e transformadora”, anunciaram os organizadores do encontro no site do mesmo. “Juntos, inspiraremos uma nova geração de patriotas a lutar pelo renascimento e continuação da nossa civilização”, prometiam.

Este programa terá escapado por completo aos serviços da Assembleia Municipal de Lisboa, cuja sala principal onde se realizam as sessões plenárias, situada no antigo Cinema Roma, costuma ser alugada a várias entidades. O PÚBLICO tentou, ao longo desta manhã, contactar a presidente daquele órgão autárquico, Rosário Farmhouse, mas sem sucesso. Mas uma nota de imprensa assinada pelos membros da mesa da assembleia municipal, e publicada esta sexta-feira, no site daquela entidade, alega o desconhecimento das reais motivações de quem solicitou o aluguer da sala. O pedido para a cedência do espaço, feito por email, alegam os membros da mesa, nada deixaria transparecer sobre o que se viria ali a passar a 2 de Novembro.

A referida solicitação, de acordo com a nota da assembleia, terá sido endereçada por uma mulher, supostamente em nome do “colectivo de jovens (partido Chega)”. E nela se requisitava a sala mais nobre da assembleia municipal para “uma conferência sobre a relação entre modernidade e colectivismo e seus efeitos na sociedade portuguesa”. Ainda de acordo com a informação avançada, no mesmo pedido referia-se que no evento haveria lugar a um “conjunto de discursos sobre a actualidade, a imprensa e a sociedade e cultura europeias. Discurso realizado por figuras de relevo do cenário nacional e internacional.”

Tudo visto, nada que levasse os serviços da assembleia a desconfiarem das intenções dos organizadores. Razão pela qual a presidente daquele órgão, Rosário Farmhouse, autorizou, por despacho datado de 24 de Outubro, a realização do que era visto como um “evento cultural”.

No comunicado de imprensa da AML, é justificada tal forma de actuação com as regras estabelecidas em 2016, quando a assembleia era presidida por Helena Roseta. De acordo com um despacho então assinado pela responsável máxima da assembleia, recorda a nota de imprensa, “pretende-se que o Fórum Lisboa/AML esteja ao serviço da sociedade civil como verdadeira Casa da Cidadania, aberto a actividades cívicas, culturais ou sociais das mais diversas entidades que o desejem utilizar”.

“De lá para cá, o edifício é cedido quotidianamente às mais diversas entidades para a realização de eventos, de natureza académica, cultural, politica, religiosa, comercial”, sublinha o mesmo comunicado, frisando ainda que “nos termos da lei, a responsabilidade pelo que é dito e feito nos eventos é dos seus promotores”.

Contactada a Juventude do Chega, esta descarta qualquer ligação ao sucedido. “Fomos apanhados de surpresa. Ficámos a saber disto por vocês. Não temos nada a ver com isso. Foi, claramente, um abuso. O pedido não foi feito por ninguém do Chega”, assegura ao PÚBLICO Rui Cardoso, da direcção nacional daquela estrutura.

Fonte da Assembleia Municipal de Lisboa diz ao PÚBLICO que, não havendo nada de irregular ou que levante suspeitas, todos os pedido feitos para cedência da sala são aceites. “Se vier de alguém do Chega, temos de autorizar, pois é um partido representado na assembleia, da mesma forma como autorizámos já encontros promovidos pelo Bloco de Esquerda”, diz.

Na manhã desta sexta-feira, o grupo do Bloco de Esquerda na assembleia municipal veio exigir, através de um requerimento dirigido a Rosário Farmhouse, explicações formais sobre o que realmente se passou a 2 de Novembro. Em comunicado, a deputada municipal Leonor Rosa lembra que este foi “um congresso de um grupo de extrema-direita racista, supremacista branco, homofóbico, misógino, que veicula uma política de ódio contra imigrantes e contra pessoas racializadas, que veicula até ideias que as mulheres não deveriam ter direito ao voto, que são inferiores aos homens”.

Texto actualizado às 12h56: Acrescenta o comunicado da AML

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