A espetacularização do medo interessa a quem?

O espetáculo promovido pelo Governo em Martim Moniz, com policiais e imigrantes como personagens em conflito, forjou uma narrativa e expos a farsa de seus criadores.

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No formato mais básico de como um espetáculo é criado estão elementos como o local onde se passa a narrativa, os personagens que nela transitam, o acontecimento e o seu desdobramento conflituoso. Pode, ao fim, revelar-se comédia, drama, tragédia, e até um pouco de cada estilo.

Definidos os elementos primeiros, é o momento de construir a linguagem, estabelecer os princípios estéticos e levar ao palco para encenar. Cria-se cenário, luz, mapa sonoro, define-se os atores, ensaia-se, trabalha-se o texto e o subtexto até chegar ao instante de estar próximo ao que se quer. Não é de estranhar, portanto, que muitos já compreenderam como se movimentar pelos códigos e estratégias.

Para além de toda a parte técnica descrita acima, um espetáculo quer contar algo, revelar uma perspectiva, ensinar o espectador sobre os princípios morais elegidos pelo corpo criativo. Compreendem, portanto, possuírem autoridade para falar e conduzir o público ao que definem por certo.

Essa qualidade de teatro é, em verdade, uma caricatura banal de como a linguagem performativa estabelece vínculos reflexivos e afetivos. Hoje, o teatro oferece novas complexidades narrativas, estéticas e simbólicas. Quem ainda permanece seguro de que a espetacularização de séculos atrás é um meio eficiente, provavelmente, ou assistiu apenas peças muito ruins ou nunca esteve em uma sala de espetáculo.

O palco escolhido foi a região da Martim Moniz; as personagens, agentes da PSP; a luz do dia potencializava a percepção da cena; a cenografia, os ambientes da praça, edifícios comerciais, entradas do metro; a sonoridade, as vozes em estado de violação dos direitos; a narrativa, prender e conduzir quaisquer imigrantes em situação irregular. O conflito dramatúrgico: o não respeito às leis definidas pelo próprio Estado.

A ação foi idealizada para ser espetacular, com correria de pessoas, jornalistas, advogados e políticos. Alguns condenaram a desnecessidade da cena; outros aplaudiram, mesmo achando-a sem a profundidade devida.

Não havia outro interesse na moral desse espetáculo do que provocar a confusão entre as sensações de medo e prazer, para dividir ainda mais o público, torná-lo incapaz de formular uma reação reflexiva efetiva. Essa estrutura narrativa simples, feita como uma novela ruim que prende o espectador diante da televisão, precisa dessas sensações para gerar paralisia.

Mas, se o tom espetacular da ação forjou sua narrativa, também expos a farsa de seus criadores. Sob o discurso da ordem e proteção, a narrativa não seria capaz de sobreviver por si, pois somos conduzidos no contemporâneo por outra qualidade de observação: tornamo-nos Homo Spectator, como define a filósofa Marie-José Mondzain.

Em sua reflexão, Mondzain demonstra como nossa subjetividade é conduzida pelo contato com as imagens e, a partir delas, como a relação entre medo e gozo formula meios para controlar nossa liberdade. Com o excesso de imagens pelas quais somos atingidos a todo instante, o espetacular é relevante por sua capacidade de tomar para si as atenções, enquanto as duas sensações se misturam e dão ao indivíduo características de dependência. Ou seja, viciamo-nos no prazer de sentir medo, ao mesmo tempo em que tememos o encontro com o prazer real.

No gesto espetacularizado promovido pelo Governo, as duas dinâmicas do vício assumem condições específicas. A primeira, prazer-medo, a sensação de gozo está no modo como os corpos daqueles retirados de cena projetam temor social. Isolados, a torcer por desaparecem, o medo se dilui à satisfação da própria segurança. A segunda, então medo-prazer, o silêncio cúmplice da satisfação íntima, que tenta esconder-se para não revelar aos demais o gozo sentido com a ação.

Por isso, o espetáculo precisa ser exagerado, para além do necessário e justificável, possibilitando encontrar nos espectadores quem reconhece a autoridade do encenador. É o pior que a linguagem do teatro pode construir. Porém, funciona, pois explora a dimensão do gozo enquanto espetáculo, a pornografização do acontecimento enquanto imaginário.

É preciso compreender, ainda, que a informação, ou sua capacidade de estimular o indivíduo, não é propriamente a cena assistida. Ela está entre o acontecimento e a percepção, no modo como atua junto à compreensão sensível de cada um antes de tornar-se racional. Essas narrativas possuem a força de invadir a imaginação. Dizer, por fim, ser apenas o começo, como fizera o Governo, projeta o vício de volta ao medo, e este à busca pelo prazer que apenas nova ações semelhantes podem oferecer.

A liberdade que se acredita protegida sofre exatamente o oposto. O indivíduo é submetido a um estado de dependência emocional, enquanto espera do Governo o instante que ele lhe oferecerá o prazer de volta. A isso, Paul B. Preciado chamou por farmacopornografização do sujeito.

O espetáculo, como já o disse, é ruim, mal encenado, explícito em sua obviedade e criado a partir de uma narrativa que não se sustenta. Os imigrantes não são a causa do aumento da criminalidade, as pesquisas comprovam insistentemente isso. O problema é, mesmo o pior espetáculo, acaba por cativar um público fiel, e quanto mais violenta for a imagem, mais alcance imediato e irracional possui.

Aos que escaparam, ficou a sensação de desproporcionalidade e irrealidade. Esse real que não se afirma e se verifica tal como o conhecemos também é próprio do teatro. Mas eles não se importam. Há muito, a política mundial roubou para si até os princípios do teatro do absurdo.

Sugestões de leituras:

> A superindústria do imaginário, de Eugênio Bucci. Editora Autêntica, 2021.
> Discurso de ódio: uma política do performativo. Editora Unesp, 2021.
> O discurso da estupidez, de Mauro Mendes Dias. Iluminuras, 2020.
> Texto Junkie, de Paul. B. Preciado. Editora n-1, 2018.
> Homo Spectator: ver, fazer ver, de Marie-José Mondzain. Orfeu Negro, 2015.
> A vida sensível, de Emanuele Coccia. Cultura e Barbárie, 2010.

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