Nem todos os cachorros estão destinados a tornar-se "cães trabalhadores".
Para alcançar esse estatuto, é preciso um temperamento específico, certas capacidades cognitivas e meses de treino formal. Ainda assim, segundo especialistas, pelo menos metade dos cães em treino para funções de assistência não consegue passar, resultando em custos de tempo e dinheiro, além de prolongar a espera por animais de assistência.
Por enquanto, não há forma de prever com exactidão quais cães serão adequados para funções de trabalho, mas cientistas especializados em comportamento canino estão a trabalhar para mudar isso. Estão a estudar cachorros na esperança de desenvolver um modelo comportamental que antecipe a probabilidade de sucesso no treino e entrada no "mercado de trabalho" canino.
"O objectivo é que o maior número possível de cães se forme com sucesso e possa ajudar mais pessoas, de forma mais célere", diz Emily Bray, professora assistente na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade do Arizona, cujas investigações se centram em cachorros e cães adolescentes seleccionados como futuros cães de assistência. "Queremos que os cães também desfrutem e prosperem nos trabalhos que lhes atribuímos", acrescenta.
De acordo com o American Kennel Club (AKC), o treino de um cão de assistência pode custar 25 mil dólares ou mais. Além disso, a atribuição de um cão de assistência pode demorar entre um e cinco anos, segundo o grupo Medical Mutts.
Tal como os humanos, os cães podem ter diferentes funções.
Um cão de assistência desenvolve uma relação de proximidade com o seu humano, seja ajudando uma pessoa com deficiência física ou apoiando quem enfrenta questões de saúde mental, como o stress pós-traumático.
Por outro lado, os cães de detecção ou busca localizam explosivos, drogas ou cadáveres, e em alguns casos são treinados para identificarem determinadas doenças. Embora estejam ligados a um profissional humano, são mais independentes do que os cães de assistência.
Estes diferem dos cães de terapia, que não recebem treino formal. Estes animais voluntários proporcionam conforto aos seus donos e a outros, como pacientes hospitalares, estudantes universitários sob pressão ou sobreviventes de catástrofes.
Factor independência
"Se és um cão que faz buscas, precisas de ser independente (não depender sempre de humanos) e ser motivado para procurar", explica Brian Hare, professor de antropologia evolucionária e fundador do Duke Canine Cognition Center.
"Por outro lado, um cão de assistência precisa de ajudar uma pessoa com deficiência física, por exemplo, a abrir portas, apanhar chaves, ou ajudar a pôr e tirar roupas da máquina de secar. Esse cão tem de ter autocontrolo e ser dependente", acrescenta Hare. "Queremos que estejam profundamente ligados e focados na sua pessoa."
Lucia Lazarowski, professora assistente na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Auburn, e cientista chefe do programa de ciências de desempenho canino da mesma universidade, onde testa futuros cães de detecção, concorda.
"Cães de detecção têm de procurar em locais com ruídos altos e outras distracções", afirma Lazarowski. "Precisam de confiança e não se podem distrair. Podem receber orientações de um humano, mas sem depender de proximidade constante."
Pistas sobre a capacidade de treino
Estas características são cruciais e "desempenham um papel significativo no potencial de um cão" como "cão de trabalho", afirma Clara Wilson, investigadora no Penn Vet Working Dog Center da Universidade da Pensilvânia. Contudo, vincular estes comportamentos ao sucesso futuro ainda está em desenvolvimento. "A ligação entre características específicas e os resultados práticos de trabalho ainda não é totalmente compreendida", refere.
Bray destaca alguns comportamentos que sugerem potencial, como a disposição do cachorro para fazer contacto visual com humanos e a capacidade de atenção "quando usamos uma voz aguda para falar com eles". "Chamamos a isto 'discurso direccionado ao cão'... Sabemos que, em geral, tanto bebés como cães prestam mais atenção a quem fala de forma aguda."
Cachorros que "olham à volta quando falamos ou se deitam num canto" são menos propensos a dar-se bem no treino, diz Bray.
Mas as experiências dos cães com humanos influenciam os resultados nos primeiros meses, "por isso, não podemos saber com 100% de certeza" se serão bons cães de assistência, mesmo com previsões melhoradas, alerta.
Ciência adorável
Brian Hare e Vanessa Woods, cientista investigadora da Universidade de Duke, estão entre aqueles que procuram indicadores fiáveis e precoces para identificar cães promissores como cães de assistência.
Em 2018, lançaram o Jardim-de-Infância para Cachorros de Duke, um estudo financiado por institutos nacionais de saúde dos EUA. Testaram 101 cachorros e esperam desenvolver um modelo estatístico capaz de prever quais os animais com maior probabilidade de se tornarem bons cães de assistência.
A partir das oito semanas de idade – e a cada duas semanas até atingirem as 20 semanas –, os investigadores submetem os cachorros a jogos cognitivos, uma forma de teste de aptidão. No entanto, os cientistas afirmam que ainda levará vários anos e mais estudos para que possam tirar conclusões definitivas.
“Nunca a investigação científica foi tão adorável”, diz Hare.
Os jogos que realizam com os cachorros muitas vezes indicam quais os trabalhos mais adequados para eles. Hare descreve um exemplo. “Colocamos um pedaço de ração num tupperware mal fechado”, explica Hare. “O cão aproxima-se, tira a tampa e consegue o alimento. Depois, fechamos a tampa. Alguns cães trabalham arduamente, de forma persistente, para tentar obter a comida sozinhos. Isso demonstra um cão muito independente, persistente na busca. Perfeito para detecção.
“Depois, há o cão que desiste rapidamente e depende do seu humano”, continua. “Ele faz contacto visual imediato com as pessoas na sala e, com o olhar, parece dizer: ‘Ei, tu tens um polegar – ajuda-me aqui.’ O primeiro cenário aponta para um bom cão de detecção, o segundo para um bom cão de assistência.”
Lucia Lazarowski, investigadora na Universidade de Auburn, concorda. Um bom cão de detecção “não desiste”, afirma. Embora possa procurar mais orientação do treinador, isso é positivo, “um sinal de flexibilidade”, acrescenta.
Muitos dos testes utilizados por Lazarowski medem a reacção dos cães a distracções. Os cães de detecção devem “recuperar rapidamente de algo surpreendente ou assustador e não demonstrar medo”, diz.
Para testar isso, os cientistas utilizam grandes bonecos insufláveis dançantes ou um sopro de buzina para testar cães adolescentes. Com os cachorros mais jovens, abrem guarda-chuvas, apresentam pessoas com roupas “estranhas” ou brinquedos que se movem e fazem barulho. “Eles aproximam-se e exploram ou recuam e evitam?”, questiona. “Queremos que façam o primeiro.”
Num estudo, Lazarowski testou 60 cachorros a partir dos 3 meses e até 1 ano de idade. Num segundo estudo, observou os cachorros quando tinham entre 3 e 4 anos.
Embora os estudos tenham sido concebidos para avaliar os procedimentos de teste, os investigadores descobriram que, quanto melhor os cães se comportavam quando eram cachorros, mais provável era o seu sucesso, sugerindo que “as características associadas ao sucesso no trabalho são evidentes desde tenra idade”, afirma Lazarowski.
Desenvolver autocontrolo
Os cientistas de Duke descobriram que a maioria das características necessárias para o treino surge entre as 8 e as 16 semanas de idade. Às semanas, os cachorros conseguem interpretar gestos com as mãos, como apontar, e mostram sinais iniciais de memória de trabalho, o que significa que conseguem reter informações, como “sentar” ou “ficar”, durante curtos períodos.
Trata-se de uma evolução em relação aos primeiros tempos, em que os cachorros se sentavam ou ficavam quietos apenas durante alguns segundos, “e depois esqueciam-se do que estavam a fazer”, comenta Woods.
Com 10 semanas, o seu autocontrolo melhora e começam a estabelecer contacto visual com os humanos. Com 13 a 14 semanas, conseguem adaptar-se a mudanças em comportamentos previamente aprendidos; por exemplo, encontrar uma nova rota para chegar à comida, caso o caminho anterior seja bloqueado. “Os que conseguem perceber isso mais rapidamente têm maior probabilidade de ser bons cães de assistência”, refere Woods.
Hare e Woods descrevem o seu trabalho num novo livro, Puppy Kindergarten, acreditando que as conclusões se aplicam também aos animais de companhia. “Muitas das qualidades que apreciamos nos cães de assistência são as mesmas que gostaríamos de ver nos nossos animais de estimação”, diz Woods.
O casal vive com Neutron, um labrador/golden retriever de quase 1 ano, que faz parte da actual turma do jardim-de-infância. Preocupam-se com o potencial de Neutron como cão de assistência, já que ele não tem tido um bom desempenho nos testes. Mas, se falhar, fará parte permanente da família. “De qualquer forma, estaremos orgulhosos dele”, afirma Woods.