Um jardim (e um rio desviado) salvaram Valência

A catástrofe da semana passada também mostra a necessidade de adaptar uma visão de território e de paisagem a cada situação.

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Megafone P3 JORGE ZAPATA
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Da região de Valência chegaram imagens nunca antes vistas: enxurradas a correr pelas ruas, atravessando os prédios, a arrastar carros, que parecem ser de papel, "como juguetes", assim foi descrito na imprensa local.

As imagens deram a volta às redes sociais, deixando a cidade levantina presa à memória da tragédia, o que pode gerar confusão. O que aconteceu foi bem diferente: a cidade de Valência saiu quase ilesa do dia da catástrofe.

Naquela imensa planície costeira, sofreram as casas a oeste do "novo" rio Túria, em Paiporta e Torrent. A leste, nada de novo. Como é que a fúria do rio passou ao lado da cidade de Valência, sem nela ter tocado? A resposta está no "velho" rio Túria, que se manifestou pela última vez em 1957. Daquele fenómeno de gota fria resultaram cheias imensas, com largas dezenas de mortes a lamentar. Em poucos meses, começou uma obra arrojada: secar o leito do rio e desviar as suas águas para fora da cidade, num caneiro com margens de betão.

As obras do "novo" rio Túria durariam até 1969, e nesse tempo choveram ideias sobre o que fazer ao leito do "velho" Túria. Foram propostas várias auto-estradas com viadutos, que acabaram por não ir em frente, porque encontraram grande resistência popular. Se, como diz o ditado, Roma e Pavia não se fizeram num dia, também as grandes obras raramente saem de uma só cabeça.

O desenvolvimento da cidade de Valência foi amplamente discutido, e anos mais tarde, entre os arcos das pontes medievais, nasceram vários jardins. O "velho" Túria deu origem a um corredor verde de mais de oito quilómetros de comprimento, a unir toda a cidade de Valência, sendo um percurso de eleição para quem quer correr, andar de bicicleta ou ler um livro. Entre os vários troços do antigo leito, encontram-se jardins desenhados por Ricardo Bofill e a Cidade das Artes e das Ciências, com o traço de Santiago Calatrava. Os jardins vão em breve chegar ao mar, com a naturalização do espaço da antiga foz do rio.

É claro que a catástrofe dos últimos dias tem várias explicações. Falharam serviços de emergência e, principalmente, as águas galgaram a margem poente do "novo" Túria, exterior à cidade de Valência, alagando a periferia. O descontentamento popular, demonstrado na visita do rei Filipe VI e do primeiro-ministro Pedro Sanchez, também reside no esquecimento dos que vivem e trabalham fora dos centros urbanos.

Há, contudo, uma lição que Valência pode ensinar: que a cidade pode ser desenhada juntando a capacidade de antevisão de várias décadas, fundamental nas grandes obras, mas discutindo, de forma abrangente, o que fazer com cada espaço, mesmo que seja o leito poeirento de um antigo rio. Um rio desviado e um jardim salvaram Valência do pior. A catástrofe da semana passada também mostra a necessidade de adaptar uma visão de território e de paisagem a cada situação. Um movimento de cidadãos queria renaturalizar o "novo" Túria com vegetação autóctone. Se a obra tivesse terminado, a vegetação travaria o escoamento de água. Provavelmente, Valência teria sido alagada. Parques urbanos e grandes obras de engenharia hidráulica podem ser projectos difíceis de conciliar.

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