Crianças que sofrem bullying têm maior probabilidade de sentir dor na vida adulta

Estudo concluiu que quem passa por experiências adversas como divórcios, dificuldades financeiras e mudanças de casa ou escola tem maior probabilidade de desenvolver condições dolorosas no futuro.

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Projecto SEPIA estudou a estudar a forma como os adolescentes vivem e relatam a dor física na transição para a vida adulta Rui Gaudêncio
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As crianças e adolescentes que passam por experiências adversas nas primeiras décadas de vida — como episódios de bullying, o divórcio dos pais, dificuldades financeiras e mudanças de casa ou escola — têm maior probabilidade de desenvolver sensações prolongadas de dor ao longo da vida. Mas mesmo na ausência de experiências deste tipo, a dor já é algo muito comum na infância, com uma em cada seis crianças a revelar senti-la durante períodos superiores a três meses.

Estas são as principais conclusões de um estudo iniciado em 2021 por uma equipa de investigadores do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e da Sociedade Portuguesa de Reumatologia, que se propôs estudar a forma como os adolescentes vivem e relatam a dor física na transição para a vida adulta.

Depois de três anos de estudo, os resultados do projecto SEPIA ​(acrónimo para a designação, em inglês, Studying Experiences of Pain In Adolescents) foram divulgados esta quinta-feira e mostram que a forma como as crianças e os adolescentes percepcionam a dor é determinante para a qualidade de vida física e mental no futuro. Raquel Lucas, investigadora do ISPUP e coordenadora do projecto, diz que a ideia de investigação surgiu da "constatação de que a dor musculosquelética é uma das principais causas de incapacidade no mundo, em particular a dor lombar".

"Estamos habituados a pensar na dor como resultado de um problema físico, de uma lesão que se pode corrigir, de um problema médico. Só que, na verdade, a maior parte dos casos de dor crónica não tem uma causa atribuída que se possa modificar. O projecto surge porque a dor é uma experiência muito subjectiva, principalmente quando é crónica", refere a investigadora.

A base do estudo envolveu questionários e avaliações a 5000 participantes: mais de 2000 jovens com idades entre os 14 e os 18 anos e os seus cuidadores. Estes jovens foram recrutados através da "coorte" de nascimento do projecto Geração 21 (que acompanha milhares de jovens desde o seu nascimento, no início dos anos 2000) e do Registo Nacional de Doentes Reumáticos, que acompanha jovens com artrite idiopática juvenil.

A recolha de dados começou em Junho de 2022 através de uma aplicação para telemóveis desenvolvida especificamente para o projecto por uma equipa do Inesc-Tec – Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência. Jovens e pais instalaram a aplicação e responderam a questionários que incluíam perguntas sobre vários aspectos relacionados com a dor. Além disso, a equipa de investigação utilizou informações dos participantes da Geração 21, recolhidos nas avaliações dos 7, dos 10 e dos 13 anos e, posteriormente, também na avaliação dos 18 anos, que arrancou em 2023 e que ainda está a decorrer.

Partindo do princípio de que a dor é uma experiência desenvolvida ao longo da vida e que as trajectórias de dor crónica são determinadas não só pela biologia e pelo que acontece a cada ser humano, mas também pelo ambiente psicossocial em que está inserido, a equipa concluiu que a dor com características mais adversas é "muito comum". Do grupo estudado de 2000 participantes, mais de 10% das crianças até aos 10 anos relataram ter dor múltipla ou de longa duração que lhes restringe as actividades diárias.

"É uma frequência francamente elevada. Essa dor, muitas vezes, mantém-se até a adolescência, e até se agrava em alguns casos, e tem impacto tanto a curto como a longo prazo. Quem reporta dor aos 13 anos tem pior qualidade de vida no início da vida adulta, aos 18 anos. Por outro lado, também percebemos que na maior parte dos casos não foi encontrada uma explicação médica para a dor destes jovens", refere a investigadora.

Bullying, violência e negligência

Além dos questionários, foi necessário encontrar uma forma padronizada de medir as experiências de dor, que é tão subjectiva e difícil de medir através de perguntas. Os participantes foram submetidos a um exame físico de resistência à pressão (e à dor) que consiste em definir o nível de desconforto à medida que uma braçadeira que lhe foi colocada abaixo do joelho aperta e alarga. Com a ajuda de um pequeno comando, o jovem vai dizendo se sente menos ou mais desconforto a cada etapa do teste.

"Observamos muitas diferenças entre rapazes e raparigas. Nos adultos, quando se pergunta a homens e mulheres se têm alguma dor física, em particular dor musculoesquelética, as mulheres costumam reportar sempre mais porque sentem que é socialmente mais aceite. Os homens reportam menos porque acham que têm a obrigação de ser mais estóicos. O que medimos no nosso estudo foi um aumento da tolerância à dor nos rapazes ao longo do desenvolvimento pubertário que não se verifica nas raparigas. Há uma diminuição da sensibilidade fisiológica à dor nos rapazes e uma manutenção nas raparigas que pode explicar, pelo menos em parte, que depois em adultos venham a ter sintomas diferentes", aponta Raquel Lucas.

Foi ainda possível constatar que, nas raparigas, há uma relação estatística entre o Índice de Massa Corporal (IMC) aos dez anos e a dor reportada na adolescência, aos 13 e aos 17 anos: quanto maior o IMC, maior o risco futuro de dor musculoesquelética. Esta relação pode ser explicada por motivos mecânicos ou bioquímicos, mas também pode ser causada por factores psicossociais: foi possível observar que quanto menor a satisfação do adolescente com a sua imagem corporal, menor a sua tolerância à dor no teste da pressão.

Os dados recolhidos nas diferentes fases da vida dos participantes mostram que as crianças que foram vítimas de bullying até aos 10 anos de idade manifestaram, depois, perfis de dor adversos aos 13, tanto nos relatos que fizeram como na sua resposta física aos testes de tolerância à pressão. O estudo mostrou que uma criança vítima de bullying tem 70% mais probabilidade de vir a sentir dor grave, que a impede de realizar actividades quotidianas, como ir à escola, na adolescência.

"Estávamos interessados em perceber se a adversidade condiciona as experiências de dor, se miúdos com um contexto interpessoal mais complexo poderiam sentir mais dor. Começámos por contabilizar as adversidades quase como uma pontuação: a criança foi vítima de violência em casa? E de negligência? Tem progenitores que foram vítima dessas mesmas experiências? Existe utilização de drogas em casa? Algum dos pais tem doenças mentais?", exemplifica a investigadora. "Quanto maior o número de adversidades contabilizadas, maior era o nível de dor declarada nos vários questionários".

Os resultados do estudo destacam ainda as implicações da dor na infância a longo prazo e a importância da percepção da dor na formação do bem-estar futuro. “Todos conhecemos pessoas que raramente se queixam de dores, mesmo que nos pareça que têm doença ou lesão grave. Por outro lado, há pessoas que se queixam de muita dor quando têm uma doença que nos parece ligeira. Ou seja, independentemente da gravidade, o mesmo problema físico pode causar níveis de sofrimento muito diferentes em diferentes pessoas", diz Raquel Lucas. "Por isso, hoje a dor é entendida como uma experiência individual e subjectiva, que resulta das nossas doenças físicas, mas também da interacção destas com o nosso contexto psíquico e social. Este projecto ajuda-nos a mostrar que o mundo que nos rodeia enquanto crianças influencia de modo relevante a dor futura."

Para a investigadora, as conclusões deste projecto podem ser incluídas nos programas de educação para a saúde, particularmente no contexto escolar. As informações também permitem sinalizar as crianças que terão maior risco de viver experiências adversas de dor musculoesquelética. E, estando esta dor pediátrica identificada, poderá ser mais fácil prevenir a sua transformação em dor crónica.

"A dor deve ser vista como uma experiência que pode ser alterada, por exemplo, através da actividade física. Existe a crença de que quando temos alguma dor precisamos de parar até que a dor passe. E isso é verdade na dor aguda, mas na dor crónica não. É importante continuar a fazer actividade física e continuar a ter uma participação activa na vida social", acredita a coordenadora do SEPIA. Em termos de saúde pública, o projecto poderá ajudar a identificar possíveis áreas de actuação de políticas que se destinem a mitigar o impacto dos contextos adversos para o surgimento e a persistência da dor, como é o caso da adversidade social, que parece interagir com os factores biológicos para piorar as experiências de dor física.

Financiado pela fundação europeia Foreum – Foundation for Research in Rheumatology, o estudo também envolveu pacientes adultos parceiros de investigação, algo que, segundo a investigadora Raquel Lucas, é raro neste tipo de estudos. "Tudo isto foi concebido com duas pessoas, duas pacientes parceiras de investigação, que são duas pessoas com doença reumática e que nos acompanham ao longo de todo o percurso, para nos aconselhar sobre o que é que acham que é importante, em termos dos objectivos e em termos da interpretação dos resultados."

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