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Dá-se um jeito (Ou de onde vem o jeitinho)
O “homem cordial”, pai do jeitinho, privilegia as relações pessoais e procura resolver os problemas por meio de arranjos informais, já que considera as regras estabelecidas muito rígidas.
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Tenho a sorte de viver nas cercanias de um cemitério, o que me permite desfrutar de uma vizinhança tranquila e silenciosa durante a maior parte do ano. Esse sossego eterno só é perturbado na semana que antecede o 1º de novembro, quando se celebra o Dia de Todos os Santos. É nesse momento que a movimentação dos vivos transforma aquela área antes pacífica em um tumultuado — e disputado — espaço de coexistência entre o sagrado e o profano.
Em frente à entrada do sepulcrário há uma farta oferta de vagas de estacionamento, que, normalmente, só estão completas em dias de grandes velórios ou datas simbólicas. São espaços de bastante valia, por exemplo, para pessoas com mobilidade reduzida. Porém, um curioso fenômeno chamou-me a atenção: dias antes do Todos os Santos, um mesmo carro contrariava a pintura das vagas no chão, ocupando três lugares simultaneamente, ao arrepio da lógica, das leis de trânsito e das normas de boa convivência.
Alguns dias se seguiram até que, na quarta-feira, dia 30, aquela barbeiragem automobilística deu lugar a uma enorme barraca de flores. Muito bem arrumada, a tenda estava armada e preparada para abastecer a clientela que ali se formaria. À frente dela, um simpático senhor cuidava de retirar os últimos arranjos do carro, que servia, ao mesmo tempo, como depósito de mercadorias e garantidor da reserva do espaço público.
Num desses dias estava a caminho do supermercado e passei, a pé, em frente à barraca. Naquele momento, aproximava-se também uma freguesa que, aparentemente surpresa, disparou: "Hum, arranjaste lugar mesmo à porta este ano". No que o senhor, dando de ombros, respondeu: "Pá, dá-se um jeito". O senhor olhou-me sorridente e trocamos votos de bom dia. E a vida seguiu, mas fiquei com a nítida impressão de já ter visto aquela cena em algum lugar.
Mais uns passos adiante, cruzei a fachada da floricultura do bairro, que amargava a solidão da concorrência imposta pelos empreendedores informais, estrategicamente posicionados para atender à demanda, esvaziando qualquer hipótese de caminhada até o estabelecimento, na quadra seguinte, para a compra da justa homenagem aos que se foram. E foi então que percebi que aquele episódio não era apenas uma impressão, ou déjà-vu, para gastar o meu francês. Na verdade, eu havia acabado de ser cumprimentado, em plena Grande Lisboa, pelo “homem cordial”, de Raízes do Brasil, disfarçado de vendedor de flores. Nada mais emblemático para um imigrante zuca.
Estão nas Raízes do Brasil, obra prima de Sérgio Buarque de Holanda, muitas das ideias-chave para compreender fenômenos como o que narrei acima. Ainda que passível de inúmeras críticas, não se pode diminuir a lucidez das conclusões de um autor que, há quase 90 anos, já denunciava mazelas que recaem sobre a sociedade até os dias de hoje.
O “homem cordial”, pai do jeitinho, privilegia as relações pessoais ante as normas institucionais e procura resolver problemas por meio de arranjos informais, já que considera as regras estabelecidas muito rígidas. Em seu raciocínio e conduta social, prevalece a lógica do particular sobre o universal e, por isso, tem dificuldade enorme em separar o público do privado. E isso o deixa confortável para usar o privado para ocupar o público, sem despertar a antipatia da coletividade. Nesse caso, eram só flores, embora na sociedade nem tudo o sejam.
O “homem cordial” chegou ao Brasil nas caravelas. E, desde então, vem sendo cuidadosamente evoluído, lá e cá. Ele não apanha filas no hospital, pois tem boas amizades. Ele consegue matricular o filho na escola mais próxima, porque conhece alguém “de dentro”. Ele não é multado, pois conversa com o guarda. Ele consegue promoções no trabalho, já que se dá bem com toda a gente. E ele não liga para o que estou escrevendo. Afinal, ele não é melhor do que ninguém; só faz o que todo mundo faz.