Não encolham os ombros

Podemos discutir até à exaustão qual é a palavra correcta para classificar Donald Trump — fascismo ou tirania, autoritarismo ou iliberalismo. Não podemos encolher os ombros.

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Ouvi, no sábado, do princípio ao fim, a intervenção de Barack Obama num comício em Milwaukee, no Wisconsin. Lembrei-me das razões pelas quais foi eleito e reeleito Presidente num país onde a mancha do racismo está longe de desaparecer. Contra um Partido Republicano, ainda não MAGA, que tinha um só objectivo político: fazer dele um Presidente de um só mandato. Falou muito pouco de políticas. Falou muito de valores. Aqueles que os pais tentam ensinar aos filhos. Aqueles que lhe foram ensinados a ele, filho de um pai ausente, pela mãe, pelo avô, pelos vizinhos, pelos professores. Da verdade, da responsabilidade, do respeito pelos outros, de não querer fazer aos outros aquilo que não queremos que os outros nos façam. Dos valores que nos ajudam a tornarmo-nos seres humanos decentes.

Dirigia-se aos milhões de americanos que escolhem hoje votar em Donald Trump, mesmo sendo, na sua esmagadora maioria, cidadãos decentes. Rejeitam o que ele diz, as mentiras, os insultos, a vulgaridade obscena, o racismo, o desprezo pelos seres humanos mais vulneráveis, pelas mulheres, o apelo constante à violência. Encolhem os ombros. Acreditam que, apesar disso tudo, com ele, a América será mais forte para intimidar o mundo. Que a economia funcionará melhor. Que cada uma das suas vidas será mais bem protegida. Que o liberalismo excessivo dos democratas, nas escolas, na sociedade, nas empresas, na fronteira, corrói esses valores de que Obama fala. Podem desprezar o personagem. Preferem encolher os ombros.

O niilismo tomou posse da América? Está a tomar posse das democracias? O egoísmo e a crueldade prevalecem sobre a solidariedade e a responsabilidade? O medo está a ganhar à esperança? Não sei a resposta. Sei apenas que, quando o general John Kelly, que foi chefe de gabinete de Trump durante um ano, diz do ex-Presidente que encaixa “na definição geral de fascismo” e que estava constantemente obcecado com Hitler e Mussolini; quando o general Mark Milley, ex-chefe das Forças Armadas, o define como “fascista até ao tutano”; ou quando a jornalista e historiadora Anne Applebaum faz uma pesquisa sobre as vezes que Trump repete a palavra “verme”, usada por Hitler e por Estaline para designar judeus ou inimigos, deixa de ser possível encolher os ombros. Trump promete ir atrás dos “inimigos internos”, se for preciso, recorrendo ao Exército. Se vencer, tem um objectivo imediato: colocar os seus fiéis em todos os níveis da Administração. Basta olharmos para o que aconteceu ao Supremo Tribunal, com as nomeações de juízes no seu primeiro mandato, para sabermos do que fala e que fala a sério. Apoderar-se do aparelho de Estado é o primeiro passo dos candidatos a ditadores. Foi o que fez Viktor Orbán, o único líder europeu que Trump gosta de elogiar.

Podemos argumentar que a sociedade civil americana é forte e que saberá resistir. Ou que os estados federados têm uma grande liberdade de acção. É verdade. Podemos discutir até à exaustão qual é a palavra correcta para classificar Donald Trump —​ fascismo ou tirania, autoritarismo ou iliberalismo. Não podemos encolher os ombros.

Devemos também prestar atenção ao que alguns académicos nos querem dizer, quando encontram apenas um precedente na História americana em que o futuro do país esteve em causa com idêntico dramatismo — a eleição de Abraham Lincoln em 1861. Sabemos porquê. Travou uma guerra civil para impedir a secessão dos estados do Sul, segregacionistas, e abolir a escravatura.

Com uma diferença. A decisão dos americanos, seja ela qual for, repercute-se hoje no mundo inteiro. Se nos faltava ainda uma derradeira evidência, Trump elogia constantemente os ditadores — Vladimir Putin, Kim Jong-un, Xi Jinping. Admira-os e inveja-os porque são obedecidos e venerados. Despreza as democracias.

A Europa sabe das consequências da sua reeleição — na segurança, na economia e no destino das suas democracias. O que acontece na América atravessa, mais tarde ou mais cedo, o Atlântico. Também nós não podemos encolher os ombros. É uma tremenda irresponsabilidade ouvir dizer que tanto faz.

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