Aqui na América
Trump ou Harris? “Eu bem vos dizia”
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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Há alguém que vai poder dizer "eu bem vos dizia" depois das eleições norte-americanas desta terça-feira. Só não sabemos ainda quem, nem quando.
Os últimos dias foram positivos para a campanha dos democratas. O estrondoso tiro no pé que foi o comício de Donald Trump de 27 de Outubro em Nova Iorque, onde um humorista comparou Porto Rico a uma "ilha de lixo flutuante", terá mesmo feito mossa no apoio do eleitorado latino aos republicanos. Uma sondagem da televisão hispânica Univision indica que 69% dos inquiridos latinos consideraram a piada "mais racista do que engraçada" e 71% pensam que a tirada, mesmo que tivesse sido apenas uma piada, é sintomática do teor racista da campanha de Trump. Entre o republicano e Kamala Harris, 64% escolhem agora a candidata democrata.
Recorde-se uma vez mais: os porto-riquenhos são cidadãos norte-americanos. Mesmo que não votem nas presidenciais a partir da sua ilha ancestral, que não tem o estatuto de estado norte-americano e não conta para o colégio eleitoral, os porto-riquenhos que residam num dos 50 estados norte-americanos (ou no Distrito de Colúmbia, da capital Washington) podem votar e são decisivos. Na Pensilvânia, onde estive em reportagem, o mais decisivo dos estados decisivos, que Trump ganhou por 40 mil votos em 2016 e perdeu por 80 mil em 2020, há meio milhão de eleitores porto-riquenhos.
Há também indícios de um voto feminino especialmente favorável aos democratas nestas eleições. A tendência reforçou-se desde 2022 com a revogação de Roe vs. Wade pelo Supremo Tribunal, de maioria conservadora desde a Administração Trump, que abriu porta à proibição ou forte restrição do aborto em vários estados republicanos.
A força do movimento "pró-vida" no Partido Republicano condiciona o seu discurso a nível local e nacional, mas uma maioria esmagadora dos norte-americanos defende o direito ao aborto. Mesmo em estados republicanos. Tanto que, desde 2022, os eleitores do Kansas, Kentucky, Montana e Ohio aprovaram em referendo a protecção desse direito, e os democratas tiveram resultados acima do esperado nas intercalares do mesmo ano.
É de um desses estados vermelhos, o Iowa, que chegou durante o fim-de-semana um dos desenvolvimentos mais animadores para os democratas: uma sondagem da unanimemente respeitada analista Ann Selzer a assinalar a possibilidade de vitória de Harris naquele estado e, mais importante ainda, a revelar um apoio esmagador das mulheres independentes. Mesmo que os resultados finais fiquem aquém do que ali se prevê, dado o predomínio histórico dos republicanos no Iowa, será um forte indício da possibilidade de uma vaga azul a nível nacional, incluindo em estados improváveis.
Há também uma incógnita relativa ao próprio eleitorado republicano. Quão fiel será a Trump? Figuras republicanas de relevo como Dick Cheney, Liz Cheney, Arnold Schwarzenegger e Adam Kinzinger, bem como centenas de membros de anteriores administrações e campanhas republicanas (das de Bush às do próprio Trump), anunciaram publicamente o seu apoio a Harris. O antigo vice-presidente de Trump, Mike Pence, já disse que não votará nele. Mitt Romney, candidato presidencial em 2012, também não. A família Bush está em revelador silêncio, só quebrado por Barbara Bush, filha de George W., que já disse que apoia Harris.
A campanha democrata e os seus apoiantes agarram-se ainda a números internos supostamente positivos, à expectativa de uma maior participação do seu eleitorado na primeira presidencial pós-pandémica, e a uma série de tendências históricas e demográficas que, garantem, impossibilitam outro cenário que não a vitória de Harris.
Mas Trump, que desafia a estatística e a lógica, continua a ter caminhos possíveis para a vitória. E se os democratas se fiam na possibilidade de um voto envergonhado de eleitores republicanos e de mulheres republicanas e independentes (mesmo em estados vermelhos), a campanha de Trump acredita tanto ou mais num cenário análogo a seu favor. Quantos apoiantes de Trump existem por aí que não estão para ter conversas incómodas e que não respondem a inquéritos?
Os republicanos continuam a contar com a simplicidade desarmante do discurso e das propostas de Trump. Os norte-americanos estavam melhor ou pior há quatro anos? Tinham mais ou menos dinheiro no bolso?
As percepções dispensam explicações complexas, a nuance, o "sim, mas". Sim, houve um pico abrupto da inflação no início do mandato do democrata Joe Biden, ditado tanto pela pandemia como pela resposta a esta.
Mas hoje a inflação está em valores saudáveis, próximos dos 2% de referência dos bancos centrais de todo o mundo, e o desemprego ronda invejáveis 4%. No entanto, a queda da inflação não é o mesmo que a deflação, e os preços nos supermercados não voltaram aos níveis pré-pandémicos. A isto, mais à escalada impressionante dos custos de habitação, é que os republicanos se agarram. Quando Trump estava na Casa Branca, dizem, tudo era melhor. Não era, e a realidade é sempre mais complexa, mas é essa a percepção.
Tal como é enganadora a percepção popular sobre o crime violento, hoje mais baixo que no final da era Trump, ou a crise da imigração ilegal, também menos grave agora do que no início do mandato de Biden, ainda que real e muito visível, também pela acção e pela inacção republicana. A Administração Biden é por isso impopular, situação agravada pelo problema de imagem do Presidente, que teimou em transpô-lo para a campanha até Julho, quando finalmente passou o testemunho a Harris.
A esse diagnóstico seguem-se propostas radicais e populistas: deportações em massa de imigrantes ilegais (e das suas famílias, ameaça Tom Homan, um dos homens fortes de Trump para a imigração), que supostamente deixarão vagas as suas casas e postos de trabalho; e tarifas astronómicas à importação de produtos, que abrirão mercado para os produtores nacionais e farão os preços cair. De pouco vale que os economistas digam que isto é um disparate e que terá o efeito contrário, com a perda de capacidade produtiva e de receita fiscal, e o encarecimento de muitos produtos, a começar pelas casas e os alimentos que dependem de mão-de-obra imigrante. A bojarda tem sempre mais impacto do que a explicação.
A mensagem trumpista conta com uma paisagem comunicacional favorável. A América que via as notícias na televisão, em família, ao jantar, já quase não existe. O hábito de comprar um jornal, ou de assiná-lo, também não. A televisão consome-se agora em plataformas que dispensam os noticiários e a exposição a pontos de vista contrários, desagradáveis mas necessários à formação de opinião informada. As notícias, ou coisa parecida, caem nos ecrãs de telemóvel, misturadas com entretenimento e propaganda, quando não são a mesma coisa, através de algoritmos que criam bolhas informativas e políticas estanques. A América que vota em Harris não vê o mesmo a que assiste a América que vota em Trump, e vice-versa, e cada uma divide-se noutras Américas mais pequeninas, cada uma com as suas realidades alternativas.
É praticamente fútil qualquer exercício de verificação de factos e de desconstrução de mentiras neste ambiente, que premeia a mentira e desonestidade. Este ano, o problema é agravado pelo papel de Elon Musk, que transformou a influente rede social Twitter, agora X, num canal de propaganda trumpista, bem como pela inacção deliberada de outros patrões das plataformas como Mark Zuckerberg.
Esta terça e quarta-feira, é possível que estas Américas, enclausuradas nas suas bolhas informativas, tenham vencedores diferentes anunciados nos seus ecrãs, com histórias reais, exageradas ou inteiramente falsas de incidentes.
É a soma dessas Américas que vota e não apenas a que está razoavelmente informada. Daí a fragilidade de exercícios de previsão assentes na História, no que sempre aconteceu. Daí que as médias das sondagens compiladas pelo New York Times, o 538, a newsletter de Nate Silver, ou até mesmo as bolsas de apostas convirjam agora no empate técnico.
Haverá da parte de quem conduz as sondagens um grande receio de voltar a fazer asneira como em 2016, 2020 e 2022, de não identificar os tais fenómenos de voto oculto, as ondas azuis ou vermelhas, e esse receio poderá estar a produzir um efeito de manada nas previsões, assinalavelmente estáveis há várias semanas e a apontar para o empate. Mas a coisa poderá estar, de facto, empatada.
A incerteza é agravada por um sistema eleitoral arcaico e caótico. As eleições presidenciais norte-americanas são, na verdade, 51 eleições presidenciais em simultâneo, cada uma com as suas regras e riscos. O vencedor não é determinado pela soma nacional do voto popular mas pelo voto indirecto, estado a estado, de forma vagamente proporcional à respectiva população, no colégio eleitoral. Trump venceu aqui em 2016, mesmo perdendo para Hillary Clinton no voto popular. Pode repeti-lo este ano.
E arriscamos não afastar essa incerteza na noite de terça para quarta-feira. Se, como quase tudo aponta, o desfecho depender da Pensilvânia, poderemos ter de esperar pela contagem dos votos de correspondência, que em vários condados poderá resvalar para quarta, e por eventuais pedidos de recontagem. Há quatro anos, esperou-se quatro dias pelo anúncio da vitória de Biden.
Há ainda a possibilidade de tudo encalhar durante o processo de certificação no Congresso (também em jogo na terça-feira), em caso de um resultado muito próximo. Este será o maior receio pós-eleitoral dos democratas, dadas as movimentações pouco subtis dos republicanos nesse sentido.
Não vos maço esta semana com isso. Fiquemo-nos, por agora, pelas apostas de resultados. Vou ter mesmo de ir para a tripla, para o 1X2. Preparem as pipocas e espreitem o PÚBLICO na madrugada eleitoral. Eu lá estarei, à espera do vosso "eu bem vos dizia".