Annie Ernaux, Sally Rooney e muitos mais pedem boicote à indústria do livro israelita

Argumentando que Israel tornou Gaza invivível, mais de dois mil autores recusam trabalhar com instituições cúmplices do “genocídio”. Em resposta, Herta Müller e outros escritores condenam o boicote.

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Mais baixas provocadas por um ataque israelita no Norte da Faixa de Gaza, na passada quarta-feira REUTERS
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Mais de dois mil autores, entre eles vencedores do Nobel da Literatura como a francesa Annie Ernaux e o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, ou do Prémio Pulitzer como Percival Everett, Viet Thanh Nguyen e Junot Díaz, apelam àquele que está já a ser considerado o maior boicote cultural de sempre à indústria editorial israelita. Numa carta aberta publicada a 28 de Outubro, explicam que enquanto "trabalhadores do livro" não podem ficar indiferentes à "mais profunda crise moral, política e cultural do século XXI", e que à "esmagadora injustiça que os palestinianos enfrentam" têm o dever de responder boicotando todas as instituições israelitas (incluindo editoras, festivais, agências literárias e publicações) que sejam cúmplices, mesmo que pelo seu silêncio, da "opressão" e do "genocídio" em curso.

Os signatários, entre os quais se incluem também ficcionistas bestsellers como Sally Rooney, Rachel Kushner, Peter Carey ou Arundhati Roy, ensaístas como Naomi Klein, Franco "Bifo" Berardi ou Judith Butler, ou o angolano Ondjaki, argumentam que desde Outubro do ano passado, na sequência da resposta militar à mortífera incursão do Hamas em território israelita, "Israel tornou Gaza invivível". E lembram que os "pelo menos" 43.362 mortos destes últimos 12 meses são apenas o mais recente e encarniçado desenvolvimento de um contínuo de "deslocamento, limpeza étnica e apartheid" que dura há 75 anos.

Também a cultura, acusam, participa activamente na "normalização destas injustiças". "As instituições culturais israelitas, muitas vezes trabalhando directamente com o Estado, têm-se mostrado cruciais para ofuscar, mascarar e branquear através da arte ['artwash', no original inglês] a despossessão e a opressão de milhões de palestinianos", notam, para concluir que não podem "em boa consciência colaborar com instituições israelitas sem interrogar a sua relação com o apartheid" — como no passado "incontáveis autores" o fizeram perante as políticas de segregação racial na África do Sul.

Os subscritores da carta comprometem-se assim a boicotar entidades "que são cúmplices ou se têm limitado a observar em silêncio" a devastação crescente na Faixa de Gaza e nos outros territórios da Palestina ocupada. Mais precisamente, quaisquer instituições suspeitas de "violar os direitos dos palestinianos, nomeadamente através de políticas e práticas discriminatórias, ou branqueando e justificando a ocupação, o apartheid e o genocídio conduzidos por Israel", e ainda aquelas que "nunca reconheceram publicamente os inalienáveis direitos do povo palestiniano consagrados pelo Direito internacional".

Face a uma guerra especialmente mortífera para as crianças, os mais de dois mil autores que se juntaram a esta carta apelam aos seus "colegas escritores, tradutores, ilustradores e trabalhadores do livro", bem como aos seus "editores e agentes", para se juntarem ao protesto, assumindo as suas responsabilidades morais.

A campanha, a que aderiram também escritoras como a palestiniana Suad Amiry, a indo-americana Jhumpa Lahiri, a canadiana Rupi Kaur, a etíope Maaza Mengiste, e a norte-americana Téa Obreht, foi organizada pelo Palestine Festival of Literature, fundado em 2008, em parceria com os grupos Books Against Genocide, Fossil Free Books, Publishers for Palestine e Writers Against the War on Gaza.

Entretanto, a Creative Community for Peace, uma organização pró-Israel que se opõe ao movimento internacional Boicote, Desinvestimento, Sanções, condenou já a carta aberta, que leu como uma tentativa "de perseguir, excluir, boicotar e intimidar". Autores como as Nobel da Literatura Elfriede Jelinek e Herta Müller, os historiadores Simon Schama e Simon Sebag-Montefiore ou o dramaturgo David Mamet estão entre os mil subscritores desta posição.

"Acreditamos que escritores, autores e livros — juntamente com os festivais que os mostram — juntam as pessoas, transcendem fronteiras, expandem a consciência, abrem o diálogo e podem influenciar mudanças positivas”, defendem. “Independentemente do ponto de vista de cada um sobre o actual conflito, boicotar criativos e instituições de criação gera mais divisão e fomenta o ódio.”

A continuada ofensiva militar israelita em Gaza, que está a provocar uma catástrofe humanitária sem precedentes naquele território, tem-se revelado um conflituoso campo de batalha também no meio artístico e literário, nomeadamente em países como a Alemanha ou os Estados Unidos. Já em Maio deste ano, a PEN America cancelou a cerimónia de entrega dos prémios literários que organiza e o World Voices Festival, depois de vários autores terem criticado esta organização de defesa da liberdade de expressão pela tibieza das suas posições face a Israel.

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