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Os (não) pagadores de promessas da biodiversidade
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"Promessas leva-as o vento", diz um provérbio português. Em Cali, na Colômbia, a Conferência da Convenção das Nações Unidas da Biodiversidade, a sabedoria popular está a ser posta à prova. A menos de 24 horas do encerramento previsto desta COP16, as perspectivas são de que vai encalhar esta arca de Noé que devia transportar os compromissos de todos os países do mundo para salvar a natureza.
As rochas que que estão a cortar o caminho para que se consiga cumprir o objectivo de proteger 30% do planeta até 2030 (30x30, como é designado) – para preservar a biodiversidade na terra, no mar e nos sistemas de água doce – não são surpreendentes.
Em primeiro lugar, o dinheiro que os países mais ricos prometeram para ajudar os mais pobres, e muitas vezes também os mais biodiversos, a conservar as espécies de plantas, animais, fungos, até micróbios. Quem sabe se a cura para o cancro não está numa bactéria que só se aloja numa rã que existe num lago escondido algures num canto recôndito da Amazónia?
Há dois anos, na anterior cimeira da Biodiversidade, os países comprometeram-se a mobilizar 200 mil milhões de dólares por ano até 2030 (cerca de 185 mil milhões de euros), incluindo 20 mil milhões por ano até 2025 (cerca de 18 mil milhões de euros), para acções de preservação da natureza e dos seres vivos. Quanto é que conseguiu até agora? Apenas 407 milhões de dólares (perto de 377 milhões de euros), um valor bem distante.
Parece uma esmola, se compararmos o que foi prometido com o que está a ser concretizado. O Canadá, o país onde foi alcançado o acordo para o Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal, em 2022, na COP15 desta convenção da ONU, é o maior contribuinte até agora: 143,6 milhões de dólares americanos (ou 132 milhões de euros). Dos 11 países que formalizaram as suas contribuições (mais a província canadiana do Quebeque), a Alemanha é o país europeu que garantiu mais: 40 milhões de euros.
A União Europeia prometeu dotar o Fundo Global para o Quadro da Biodiversidade com sete mil milhões até 2027, para vários programas destinados a proteger e restaurar a natureza pelo mundo fora. Mas só nesta quinta-feira anunciou um pacote de apoios no valor de 160 milhões de euros.
Os Estados Unidos são sempre um parceiro fundamental, certo? Pois não é bem assim. Os EUA são o único membro das Nações Unidas que não ratificou a Convenção Quadro da Biodiversidade, um dos três tratados internacionais que saíram da Conferência do Rio de Janeiro de 1992 – juntamente com a das alterações climáticas e a da desertificação – para cuja elaboração Washington contribuiu. O Senado, no entanto, recusa a ratificação, por considerar que viola a soberania norte-americana e prejudica os seus interesses comerciais, entre outros motivos do mesmo teor.
Apesar disto, os EUA participam nas conferências da Convenção do Clima, e patrocinam alguns projectos. Mas não se comprometeram com nenhuma soma para este fundo, necessário para o objectivo 30x30.
Mas, além do dinheiro, há a questão de quem tem lugar na mesa dos que decidem como o distribuir. E isso está a ser outra rocha na navegação da COP16. Há uma reivindicação de que este fundo da biodiversidade seja autónomo, com regras diferentes do Fundo Global para o Ambiente, que é o que actualmente existe, "que alguns países consideram que não está a dar resposta na angariação dos fundos previstos para 2025 e até 2030", explicou Francisco Ferreira, da Zero, que participa nos trabalhos em Cali.
Para financiar a protecção e restauro da biodiversidade será fundamental haver acordo sobre a distribuição dos benefícios (lucros) obtidos com os recursos genéticos da biodiversidade.
Isto é como quem diz, para usar o exemplo lá de cima, que é preciso repartir de forma justa os lucros com os eventuais medicamentos desenvolvidos a partir do hipotético micróbio que só vive com uma rã num lago recôndito da Amazónia. Esse lago fica num território, que tem grandes probabilidades de ficar numa terra indígena – e quem lá vive, e ajuda a proteger a biodiversidade, tem direito a ser compensado por isso.
"Isto não é doação, é um pagamento legítimo pelo uso de informação genética", salientou a ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, numa conferência de imprensa em Cali nesta quinta-feira.
A eventual criação de órgão permanente que garanta a participação plena dos povos indígenas e comunidades locais no trabalho feito no âmbito da Convenção da Biodiversidade é outra questão em aberto. Seria a legitimação do conhecimento ancestral e do papel que têm tido na salvaguarda da biodiversidade e dos seus direitos, sempre salientada, mas sub-representada.
O atraso está também na definição do que é preciso fazer para cumprir o objectivo 30x30.
Até 30 de Outubro, só 38 países tinham apresentado a sua Estratégia Nacional da Conservação da Natureza e da Biodiversidade ou Plano de Acção para a Biodiversidade, contabiliza a analista do think tank Chatham House Suzannah Sherman. Portugal não é um deles.
Em vez destes documentos que deveriam delinear a visão, prioridades e medidas de cada país para preservar a sua biodiversidade, bem como os passos necessários para cumprir essa estratégia, 117 países apresentaram metas nacionais, diz Suzannah Sherman. Estas metas são acções concretas, calendarizadas, destinadas a medir o progresso; mas, para serem eficazes, é preciso que haja uma estratégia para as enquadrar.
O mundo nunca cumpriu nenhuma meta de protecção da biodiversidade. Há uma falta de vontade política em aceitar e concretizar os compromissos assumidos. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse ter ido a Cali para "ajudar a dar visibilidade à crise da biodiversidade", uma das três crises ambientais com que o planeta se confronta – juntamente com as alterações climáticas e a poluição. Será que resulta?